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CONTOS
PARA A
INFÂNCIA
ESCOLHIDOS DOS MELHORES AUTORES
POR
GUERRA JUNQUEIRO
LISBOA
TIPOGRAFIA UNIVERSAL DE THOMÁS QUINTINO ANTUNES,
IMPRESSOR DA CASA REAL
Rua dos Calafates, 110
1877
A mãe
Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do
berço do seu filho, com
medo que lhe morresse. A criancinha pálida tinha os olhos
fechados.
Respirava com dificuldade, e às vezes tão
profundamente, que parecia
gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima do
que o pequenino
moribundo.
Nisto bateram à porta, e entrou um pobre homem muito velho,
embuçado
numa manta de arrieiro. Era no Inverno. Lá fora estava tudo
coberto de
neve e de gelo, e o vento cortava como uma navalha.
O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por
alguns instantes,
e a mãe levantou-se a pôr ao lume uma caneca com
cerveja. O velho
começou a embalar a criança, e a mãe,
pegando numa cadeira, sentou-se
ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada
vez com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e
disse para
o velho:
Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar!
não é verdade?―
[4]E o velho, que era a
Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em
ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o
chão, e as lágrimas
corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso
de
cabeça; estava sem dormir havia três dias e
três noites. Passou
ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a
tremer de frio.
―Que é isto! exclamou, lançando à
volta de si o olhar alucinado. O
berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora,
roubando-lhe a criança.
A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho.
Encontrou uma
mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. «A Morte
entrou-te em
casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais
depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a
entregar.»
―Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de
Deus!»
―Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto.
Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as
canções que cantavas
ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou
a Noite e
muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
―Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora
não me
demores, porque quero encontrar o meu filho.―
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita
em lágrimas, começou a
cantar. Cantou muitas canções, mas as
lágrimas foram mais do que as
palavras.
[5]No fim disse-lhe a
Noite: «Toma à direita, pela floresta escura de
pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu
filho.»
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o
caminho, e não
sabia que direcção havia de seguir. Diante dela
havia um matagal,
cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve
cristalizada.
―Não viste a Morte que levava o meu filho?»
perguntou-lhe a mãe.
―Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho,
senão com a
condição de me aqueceres no teu seio, porque
estou gelado.»
E a mãe estreitou o matagal contra o
coração; os espinhos
dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se
de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite
de Inverno frigidíssima, tal é o calor
febricitante do seio duma mãe
angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando,
andando, até que chegou à margem dum grande lago,
onde não havia nem
barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para
se andar por
ele, e era demasiadamente profundo para o passar a vau. Contudo,
querendo encontrar o seu filho, era necessário
atravessá-lo. No delírio
do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda
a água do
lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por
compaixão, faria
talvez um milagre.
[6]―Não!
não és capaz de me esgotar, disse o lago.
Sossega, e
entendamo-nos
amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas
águas, e os teus
olhos são dum brilho mais suave do que as pérolas
mais ricas que eu
tenho possuído. Se queres, arranca-os das órbitas
à força de chorar, e
levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro
lado: essa estufa é a
habitação da Morte; e as flores e as
árvores que estão lá dentro,
é ela
quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida
duma criatura
humana.»
―Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho!»
disse a mãe. E
apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou
com mais amargura do
que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e
caíram no fundo
do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as
não teve no
mundo uma rainha.
O lago então ergueu-a, e com um movimento de
ondulação depositou-a na
outra margem, aonde havia um maravilhoso edifício, com mais
de uma légua
de comprido. De longe não se sabia se era uma
construção artística ou
uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe
não podia ver nada;
tinha dado os seus olhos.
―Como hei-de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu
filho!» bradou
ela desesperada.
―A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que
andava dum
lado para o outro, inspeccionando a estufa e cuidando das plantas. Como
vieste tu aqui parar? Quem te ensinou o caminho?»
―Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. [7]Compadece-te
de mim, e diz-me onde está o meu filho.»
―Eu não o conheço, e tu és cega, disse
a velha. Há aqui muitas plantas
e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte
não tarda aí para
as tirar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste
sítio uma árvore ou uma flor, que representam a
sua vida e que morrem
com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes,
sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e
talvez reconheças as
pulsações do coração de teu
filho. E que davas tu por eu te ensinar o
que tens ainda de fazer?»
―Já não tenho nada que te dar, disse a pobre
mãe. Mas irei até ao fim
do mundo buscar o que tu quiseres.―«Fora daqui não
preciso de nada,
respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu
sabes que
são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus
cabelos
brancos.»―Não pedes mais nada do que isso? disse a
mãe. Aí os tens,
dou-tos de boa vontade.»
E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido
outrora o seu
orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e
inteiramente brancos da velha.
Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde
crescia exuberantemente uma
vegetação maravilhosa. Viam-se debaixo de
campânulas de cristal jacintos
mimosíssimos ao lado de peónias inchadas e
ordinárias. Havia também plantas
aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em
cujas raízes
se enovelavam cobras asquerosas.
[8]Mais longe
erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos
frondosos; depois num outro sítio isolado havia canteiros de
salsa,
tomilho, hortelã e outras plantas humildes que representavam
o género de
utilidade das pessoas que elas simbolizavam.
Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, que
pareciam rebentar; mas viam-se também florzitas
insignificantes, em
vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, tratadas com
esmero delicadíssimo. Tudo isso representava a vida dos
homens, que a
essa hora existiam no mundo, desde a China até à
Groenlândia.
A velha queria mostrar-lhe todas estas coisas misteriosas, mas a
mãe
impacientada pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam
as plantas
pequeninas; tacteava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do
coração, e, depois de ter tocado em milhares
delas, reconheceu as
pulsações do coração do seu
filho.
―É ele!» exclamou, lançando a
mão a um açafroeiro, que, pendido sobre
a terra, parecia completamente estiolado.
―Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio;
e quando a Morte
vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta
planta; ameaça-a de
arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte
terá medo, porque tem
de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem o seu
consentimento.»
Nisto sentiu-se um vento glacial, e a mãe adivinhou que era
a Morte,
que se aproximava.
[9]―Como é
que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda
primeiro do que eu! Como o conseguiste?―«Sou
mãe» respondeu ela.
E a Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino
açafroeiro.
Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as
mãos, tendo o cuidado de
não ferir uma só das pequeninas
pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas
mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da
Morte era mais frio do
que os ventos enregelados do Inverno.
―Não podes nada comigo!» disse a Morte.―Mas Deus
tem mais força do que
tu, respondeu a mãe.»―«É
verdade, mas eu não faço senão aquilo
que
ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas,
árvores e
arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as para
outros jardins,
um dos quais é o grande jardim do Paraíso.
São regiões desconhecidas;
ninguém sabe o que se lá passa.»
―Misericórdia! misericórdia! soluçou a
mãe. Não me roubem o meu filho,
agora que acabo de o encontrar!» Suplicava e gemia. A Morte
conservava-se impassível; agarrou então
instantaneamente em duas flores
lindíssimas e disse à Morte: «Tu
desprezas-me, mas olha, vou arrancar,
despedaçar não só esta, mas todas as
flores que estão aqui!
―Não as arranques, não as mates, bradou a Morte.
Dizes que és
desgraçada, e querias ir partir o
coração de outra mãe!―«Outra
mãe!»
disse a pobre mulher, largando as flores imediatamente.
[10]―Toma, aqui tens os
teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente que os
tirei do lago. Não sabia que eram teus.
Mete-os nas órbitas, e olha para o fundo deste
poço; vê o que ias destruir,
se arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da
água, como numa miragem,
a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a que teria tido o
teu filho, se
porventura vivesse.»
Debruçou-se no poço, e viu passar imagens de
felicidade e alegria,
quadros risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis
de
miséria, de angústias e de
desolação.
―Nisto que eu vejo, disse a mãe aflitíssima,
não distingo qual era a
sorte que Deus destinava ao meu filho.»
―Não posso dizer-to, respondeu a Morte. Mas repito-te, em
tudo isto
que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu
filho.»
A mãe desvairada, lançou-se de joelhos
exclamando: Suplico-te, diz-me:
era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não
é verdade! Fala!
Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o,
não vá ele sofrer
desgraças tão horríveis. O meu querido
filho! Quero-lho mais que à minha
vida. As angústias que sejam para mim. Leva-o para o reino
dos céus.
Esquece as minhas lágrimas, as minhas súplicas,
esquece tudo o que fiz
e tudo o que disse.»
―Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te
entregue o teu
filho ou que o leve para a região desconhecida de que
não posso
falar-te!» Então a mãe alucinada,
convulsa, torcendo os braços,
deitou-se de joelhos e dirigindo-se [11]a
Deus exclamou: «Não me ouças,
Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra
a tua vontade que é
sempre justa! Não me atendas meu Deus!»
E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua
agonia
dilacerante.
E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro, e foi
transplantá-lo no
jardim do paraíso.
[12]
O ouro
Era uma vez um rei, que, tendo achado no seu reino algumas minas de
ouro,
empregou a maior parte dos vassalos a extrair o ouro dessas minas; e o
resultado foi que as terras ficaram por cultivar, e que houve uma
grande
fome no país.
Mas a rainha, que era prudente e que amava o povo, mandou fabricar em
segredo frangos, pombos, galinhas e outras iguarias todas de ouro fino;
e quando o rei quis jantar mandou-lhe servir essas iguarias de ouro,
com
que ele ficou todo satisfeito, porque não compreendeu ao
princípio
qual era o sentido da rainha; mas, vendo que não lhe traziam
mais nada
de comer, começou a zangar-se. Pediu-lhe então a
rainha, que visse bem
que o ouro não era alimento, e que seria melhor empregar os
seus
vassalos em cultivar a terra, que nunca se cansa de produzir, do que
trazê-los nas minas à busca do ouro, que
não mata a fome nem a sede, e
que não tem outro valor além da
estimação que lhe é dada pelos homens,
estimação que havia de converter-se em desprezo,
logo que ouro
aparecesse em abundância.
A rainha tinha juízo.
[13]
Doçura e bondade
Há entre vós, meus filhos, índoles
violentas, que não sabem dominar-se,
e que são arrastadas pelas primeiras impressões.
É uma péssima
disposição, que é
necessário corrigir; dá lugar a disputas, e a que
se
cometam acções, cujo arrependimento chega
demasiadamente tarde.
Citar-vos-ei dois exemplos de que fui testemunha.
Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha diante
dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.
―Oh! senhor! exclamou o outro, mal sabe a pena que vai ter! Bateu num
cego!»
Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns
camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a
bater no burro, para o
fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e, mostrando-lhes a
sua perna aleijada, disse-lhes: «Se soubésseis que
eu era coxo, não
teríeis sido tão covardes.»
Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar uma
palavra.
Que vos parece estas duas lições? Estou
convencido que aproveitaram a
quem as recebeu.
[14]
O malmequer
Ouvi com atenção esta pequenina
história!
No campo, junto da estrada real, havia uma casinha muito bonita, que
deveis ter visto muitas vezes. Há na frente um jardinzinho
com flores,
rodeado por uma sebe verdejante. Ali perto nas bordas do valado, no
meio da erva espessa, floria um pequenino malmequer. Desabrochava a
olhos vistos, graças ao sol, que repartia igualmente a sua
luz tanto por
ele como pelas grandes e maravilhosas flores do jardim. Uma bela
manhã, já inteiramente aberto, com as folhinhas
alvas e brilhantes,
parecia um sol em miniatura circundado dos seus raios. Pouco se lhe
dava
que o vissem no meio da erva e não fizessem caso dele, pobre
florinha
insignificante. Vivia satisfeito, aspirando deliciosamente o calor do
sol, e ouvindo o canto da cotovia, que se perdia nos ares.
Nesse dia o pequeno malmequer, apesar de ser numa segunda-feira,
sentia-se tão feliz como se fosse um domingo. Enquanto as
crianças
sentadas nos bancos da escola estudavam a lição,
ele, sentado na haste
verdejante, estudava na formosura da natureza a bondade de Deus, e tudo
o que [15]sentia
misteriosamente, em silêncio, julgava ouvi-lo traduzido com
admirável nitidez nas canções alegres
da cotovia. Por isso pôs-se a
olhar com uma espécie de respeito, mas sem inveja, para essa
avezinha
feliz que cantava e voava.
«Eu vejo e oiço, pensou o malmequer; o sol
aquece-me e o vento
acaricia-me. Oh! não tenho razão de me
queixar.»
Dentro da sebe havia muitas flores altivas, aristocráticas;
quanto menos
aroma tinham, mais orgulhosas se aprumavam. As dálias
inchavam-se para
parecerem maiores do que as rosas; mas não é o
tamanho que faz a rosa.
As tulipas brilhavam pela beleza das suas cores, pavoneando-se
pretensiosamente. Não se dignavam de lançar um
olhar para o pequeno
malmequer, enquanto que o pobrezinho admirava-as, exclamando:
«Como são
ricas e bonitas! A cotovia irá certamente
visitá-las. Graças a Deus,
poderei assistir a este belo espectáculo.» E no
mesmo instante a
cotovia dirigiu o seu voo, não para as dálias e
tulipas, mas para a
relva, junto do pobre malmequer, que morto de alegria não
sabia o que
havia de pensar.
O passarinho pôs-se a saltitar à roda dele,
cantando: «Como a erva é
macia! oh! que encantadora florinha, com um
coração de oiro, vestida de
prata!»
Não se pode fazer ideia da felicidade do malmequer. A ave
acariciou-o com
o bico, cantou outra vez diante dele, e perdeu-se depois no azul do
firmamento. Durante mais de um quarto de hora não
pôde o malmequer
reprimir a sua comoção. Meio envergonhado, mas
todo contente, olhou
[16]para as outras
flores do jardim, que, como testemunhas da honra que
acaba de receber, deviam avaliar muito bem a sua alegria natural; mas
as
tulipas estavam cada vez mais aprumadas; a sua haste vermelha e
pontiaguda manifestava o despeito. As dálias tinham a
cabeça toda
inchada. Se elas pudessem falar, teriam dito coisas bem
desagradáveis
ao pobre malmequer. A florinha viu isto, e ficou triste.
Passados alguns momentos, entrou no jardim uma rapariguita com uma
grande faca afiada e brilhante, aproximou-se das tulipas, e cortou-as
uma a uma.
«Que desgraça! disse o malmequer suspirando;
é horrível; foram-se
todas.»
E enquanto a rapariguinha levava as tulipas, o malmequer alegrara-se
por
ser simplesmente uma pequenina flor no meio da erva. Apreciando
reconhecido a bondade de Deus, cerrou ao cair da tarde as suas folhas,
adormeceu, e sonhou toda a noite com o sol e com a cotovia.
No dia seguinte de manhã, assim que o malmequer abriu as
suas folhas ao
ar e à luz, reconheceu a voz do passarinho, mas o seu canto
era triste,
muitíssimo triste. A pobre cotovia tinha boas
razões para se afligir:
haviam-na agarrado e metido numa gaiola, suspensa entre uma janela
aberta. Cantava a alegria da liberdade, a beleza dos campos e as suas
antigas viagens através do espaço ilimitado.
O pequenino malmequer tinha boa vontade de lhe acudir: mas como? Era
difícil. A compaixão pelo pobre passarinho
prisioneiro, fez-lhe
esquecer [17]inteiramente
as belezas que o cercavam, o doce calor do sol e
a alvura resplandecente das suas próprias folhas.
Nisto dois rapazinhos entraram no jardim. O mais velho trazia na
mão
uma faca comprida e afiada como a da pequerrucha, que tinha cortado as
tulipas. Encaminharam-se para o malmequer, que não podia
compreender o
que desejavam.
«Podemos arrancar daqui um pedaço de relva para a
cotovia, disse um dos
rapazes, e começou a fazer um quadrado profundo à
volta da florinha.
―«Arranca a flor, disse o outro.»
A estas palavras o malmequer estremeceu de terror. Arrancarem-no era
morrer; e nunca tinha abençoado tanto a
existência, como no momento em
que esperava entrar com a relva na gaiola da cotovia.
«Não; deixemo-la, disse o mais velho.
Está aí muito bem.»
Foi por conseguinte poupado, e entrou na gaiola da cotovia.
O pobre passarinho, queixando-se amargamente do seu cativeiro, batia
com as asas nos arames da gaiola. O malmequer não podia,
apesar dos seus
desejos, articular-lhe uma palavra de consolação.
Passou-se assim toda a manhã.
«Já não tenho água, exclamou
a prisioneira. Saiu toda a gente, sem me
deixarem ao menos uma gota de água. A garganta queima-me,
tenho uma febre
terrível, sinto-me abafada! Ai! Não há
remédio senão morrer, longe do
sol esplêndido, longe da fresca verdura e de todas as
magnificências da
criação!»
[18]Depois enterrou o
bico na relva húmida para se refrescar um pouco. Viu
então o malmequer; fez-lhe um sinal de cabeça
amigável, e disse-lhe,
afagando-o: «Também tu, pobre florinha,
morrerás aqui! Em vez do mundo
inteiro, que eu tinha à minha
disposição, deram-me um pedacito de relva,
e a ti só por única companhia. Cada pezinho de
relva substitui para mim
uma árvore, e cada uma das tuas folhas brancas, uma flor
odorífera. Ah!
como me fazes recordar de todas as coisas que perdi!
―Se eu pudesse consolá-la! pensava o malmequer, incapaz de
fazer o
mínimo movimento.
Contudo o perfume que ele exalava, tornou-se mais forte que de costume;
a cotovia sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a obrigava a
arrancar a erva, teve todo o cuidado em não tocar nem sequer
de leve na
flor.
Caiu a noite; não estava ali ninguém, para trazer
uma gota de água à
desditosa cotovia; Estendeu então as suas belas asas,
sacudindo-as
convulsivamente, e pôs-se a cantar uma
cançãozinha melancólica; a sua
cabecinha inclinou-se para a flor, e o seu
coração quebrado de desejos e
de angústias cessou de bater. Vendo este triste
espectáculo, o malmequer
não pôde como na véspera fechar as suas
folhas para dormir; curvou-se
para o chão, doente de tristeza.
Os rapazitos só voltaram no dia seguinte, e, vendo o
passarinho morto,
rebentaram-lhe as lágrimas e abriram uma cova. Meteram o
cadáver dentro
de uma caixa vermelha, lindíssima, fizeram-lhe um enterro de
príncipe, e
cobriram o túmulo com folhas de rosas.
[19]Pobre passarinho!
Enquanto vivia e cantava, esqueceram-se dele e
deixaram-no morrer de fome na gaiola; depois de morto é que
o choraram
e lhe fizeram honrarias pomposíssimas.
A relva e o malmequer lançaram-nas para a poeira da estrada;
daquele
que com tanta ternura tinha amado a cotovia, ninguém se
lembrou.
[20]
Não quero
Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que falavam muito
alto: «Não, dizia um com voz enérgica,
não quero.» Parei e
perguntei-lhe:―O que é que tu não queres, meu
rapaz?―«Não quero dizer
à mamã que venho da escola, porque é
mentira. Sei que me há-de ralhar,
mas antes quero que me ralhe do que mentir.»―E tens
razão, disse-lhe
eu. És um rapaz como se quer.» Apertei-lhe a
mão, enquanto que o outro
pequeno, que lhe aconselhava que se desculpasse mentindo, ia-se embora
todo envergonhado.
Daí a alguns meses, passando pela mesma aldeia e tendo de
falar com o
professor, entrei na escola, onde reconheci imediatamente os meus dois
pequenos; o que não quis mentir, sorria-me, enquanto que o
outro,
vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre sobre os
dois alunos: Oh! disse-me ele, falando do primeiro, é um
magnífico
estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre pronto a
confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a
repará-las. O outro
pelo contrário, é mentiroso, covarde e
incorrigível.»―Não me espanto,
disse eu, já tinha tirado o horóscopo destas duas
crianças; e
contei-lhe o que tinha ouvido.
[21]
Piloto
Piloto era o mais inteligente e o mais afectuoso dos cães, e
o
infatigável companheiro dos brinquedos das
crianças da quinta.
Fazia gosto vê-lo atirar-se ao tanque a agarrar o pau, que
João lhe
lançava o mais longe que podia; pegava nele, metia-o na boca
e
trazia-o à margem, com grande alegria do pequerrucho e da
sua irmã
Joaninha.
Esta brincadeira recomeçava vinte vezes sem cansar nunca a
paciência do
Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos,
até que o
assobio do criado da quinta chamava o fiel animal às suas
obrigações:
partia então como um raio, para escoltar as vacas, que
levavam aos
pastos, e impedi-las de entrar no lameiro do vizinho.
Quando o hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o
Piloto o guarda
da carroça; e muito atrevido seria quem saltasse
à noite a parede da
quinta.
Uma vez deu prova de uma extraordinária sagacidade; um
jornaleiro, que se
empregava muitas vezes em levar sacos de trigo da quinta para casa,
tentou de noite roubar um saco.
Piloto, que o conhecia, não fez a menor
demonstração de hostilidade
em quanto o homem seguiu o [22]caminho
da quinta, mas, desde que se afastou
tomando por outra estrada, o guarda vigilante agarrou-o pela blusa sem
o
largar.
Era como se dissesse: «Onde vais tu com o trigo de meu
dono?»
O ladrão quis pôr então outra vez o
saco donde o tinha tirado; Piloto
não consentiu, e teve-o em guarda, sem o morder nem o ferir,
até de
manhã; o quinteiro foi dar com ele nesta difícil
posição,
repreendeu-o vivamente, e despediu-o sem divulgar o caso para o
não
desonrar.
Mas o homem ficou com ódio ao cão, e muito tempo
depois, aproveitando a
ausência do quinteiro e de seus filhos, chamou o Piloto, que
correu para
ele sem desconfiança; atou-lhe uma corda ao
pescoço e arrastou-o até à
margem do ribeiro.
Atou uma grande pedra à outra extremidade da corda e
levantando o animal
atirou-o à água; mas arrastado ele
próprio com o peso e com o esforço,
caiu também.
Como não sabia nadar, teria sido despedaçado pela
roda do moinho, se o
corajoso Piloto, obedecendo ao seu instinto de salvador e
desembaraçando-se da pedra mal atada, não tivesse
mergulhado duas vezes
e trazido para terra o seu mortal inimigo.
Este, que estava quase desmaiado, compreendeu quando voltou a si, que o
cão que ele tinha querido afogar, lhe salvara a vida.
Teve vergonha de seu acto miserável; e desde esse dia,
violentou-se a si
mesmo e combateu as suas más
inclinações.
O exemplo do cão corrigiu o homem.
[23]
O rico e o pobre
Martinho era um rapazito, que ganhava a sua vida a fazer recados; um
dia, voltando de uma aldeia muito distante da sua, achou-se cansado e
deitou-se debaixo de uma árvore, à porta de uma
estalagem, junto da
estrada. Estava comendo um bocado de pão que tinha trazido
para jantar,
quando chegou uma bela carruagem em que vinha um fidalguinho, com o seu
preceptor. O estalajadeiro correu imediatamente e perguntou aos
viajantes se queriam apear-se, mas responderam-lhe que não
tinham tempo,
e pediram-lhe que lhes trouxesse um frango assado e uma garrafa de
vinho.
Martinho estava pasmado a olhar para eles; olhou depois para a sua
côdea de pão, para a sua velha jaqueta, para o seu
chapéu todo roto, e
suspirando exclamou baixinho: Oh! se eu fosse aquele menino
tão rico,
em vez do desgraçado Martinho! Que fortuna se ele estivesse
aqui, e eu
dentro daquela carruagem!» O preceptor ouviu casualmente o
que dizia
Martinho e repetiu-o ao seu aluno, que, lançando a
cabeça fora da
carruagem, chamou Martinho com a mão.
―Ficarias muito contente, não é verdade, meu [24]rapaz, podendo trocar a
minha sorte pela tua?»―Peço que me desculpe
senhor, replicou Martinho
corando, o que eu disse não foi por
mal.»―Não estou zangado contigo,
replicou o fidalguinho, pelo contrário, desejo fazer a
troca.»
―Oh! está a divertir-se comigo! tornou Martinho,
ninguém quereria estar
no meu lugar, quanto mais um belo e rico menino como o senhor. Ando
muitas léguas por dia, como pão seco e batatas,
enquanto que o senhor
anda numa carruagem, pode comer frangos e beber vinho.»―Pois
bem,
volveu o fidalguinho, se me queres dar tudo aquilo que tens e que eu
não tenho, dou-te em troca de boa vontade tudo o que
possuo.» Martinho
ficou com os olhos espantados, sem saber o que havia de dizer; mas o
preceptor continuou: «Aceitas a troca?»―Ora essa!
exclamou Martinho,
ainda mo pergunta! Oh! como toda a gente da aldeia vai ficar assombrada
de me ver entrar nesta bela carruagem!» E Martinho desatou a
rir com a
ideia da entrada triunfante na sua aldeia.
O fidalguinho chamou os criados, que abriram a portinhola e o ajudaram
a
descer. Mas qual foi a surpresa de Martinho, vendo que ele tinha uma
perna de pau e que a outra era tão fraca, que se via
obrigado a andar em
duas muletas: depois, olhando para ele de mais perto, Martinho observou
que era muito pálido e que tinha cara de doente.
Sorriu para o rapazito com ar benévolo, e
disse-lhe:―Então sempre
desejas trocar? Querias porventura, se pudesses, deixar as tuas pernas
valentes e as tuas faces coradas, pelo prazer de ter [25]uma carruagem e
andar bem vestido?»―Oh! não, por coisa nenhuma!
replicou
Martinho.―«Eu, disse o fidalguinho, de boa vontade seria
pobre, se
tivesse saúde. Mas, como Deus quis que fosse aleijado e
doente, sofro
os meus males com paciência e faço por ser alegre,
dando graças a Deus
pelos bens que me concedeu na sua infinita misericórdia.
«Faz o mesmo, meu amiguinho, e lembra-te que, se
és pobre e comes mal,
tens força e saúde, coisas que valem mais que uma
carruagem, e que não
podem comprar-se com dinheiro.
[26]
Como um camponês
aprendeu o Padre Nosso
Tinha o coração duro, e não dava
esmolas. Foi-se confessar uma vez, e o
confessor deu-lhe por penitência rezar sete vezes o Padre
Nosso.
«Não o sei, e nunca o pude aprender, respondeu o
aldeão.»
«Pois nesse caso, tornou o confessor, imponho-te por
penitência dar a
crédito um alqueire de trigo a todas as pessoas que to forem
pedir da
minha parte.»
No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.
«Como te chamas? perguntou-lhe o camponês.
«Padre―Nosso―Que―Estais―No―Céu, respondeu o
pobre.»
«E o teu apelido?»
«Seja―Santificado―O―Vosso―Nome.»
E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.
Ao outro dia chega segundo pobre.
«Como te chamas?
«Venha―A―Nós―O―Vosso―Reino.»
«E o teu apelido?»
«Seja―Feita―A―Vossa―Vontade.»
[27]E partiu com o seu
alqueire de trigo.
Veio terceiro pobre.
«Como te chamas?»
«Assim―Na―Terra―Como―No―Céu.»
«E o teu apelido?»
«Dai-nos―Hoje―O―Pão―Nosso―De―Cada―Dia.»
E levou o seu alqueire.
Vieram ainda dois pobres sucessivamente, e passou-se tudo da mesma
forma até chegar ao Amen.
Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.
«Então já sabes o Padre
Nosso?»
«Não, sr. cura, sei só os nomes e
apelidos dos pobres a quem emprestei
o meu trigo.»
«Quais são? tornou o padre.»
E o aldeão enumerou-lhos a seguir, e pela ordem porque cada
um se tinha
apresentado.
«Já vês, disse o confessor, que
não era muito difícil aprender o Padre
Nosso, porque já o sabes perfeitamente.»
[28]
O talismã
Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma
indústria, mas
com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se, o
que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus
negócios com
uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue
inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da
direcção da
sua casa.
«Explica-me, disse um dia este último ao seu
colega, qual é a razão
porque a sorte nos trata de um modo tão diferente? Vendemos
as mesmas
mercadorias, a minha loja está tão bem situada
como a tua, e apesar
disso, enquanto tu ganhas, eu não faço
senão perder. E não é porque eu
seja estroina; não bebo, nem jogo. Já tenho
pensado algumas vezes se não
terás tu por acaso algum precioso
talismã.»
«Efectivamente, respondeu o outro, herdei de meu pai um
talismã de uma
virtude incomparável. Trago-o ao pescoço, e ando
assim com ele todo o
dia por toda a casa, do celeiro para a adega, e da adega para o
celeiro. E o caso é que tudo me corre
perfeitamente.»
[29]«Olé
meu querido colega, empresta-me pelo amor de Deus essa
relíquia
preciosa de que tanto necessito; podes ter a certeza de que ta
restituo.»
«Pois vem buscá-la amanhã de
manhã.»
Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente,
apresentou-lhe este uma avelã, através da qual
tinha passado um
fio de seda.
O nosso homem pô-la imediatamente ao pescoço, e
começou a correr toda a
casa com o talismã. Observou então a completa
desordem que por toda a
parte ali havia. Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na
cozinha o pão, a carne e os legumes; no celeiro, o milho, o
trigo, o
feijão; na estribaria, o feno e a aveia, roubados das
manjedouras dos
cavalos; viu, finalmente, como os seus livros e registros estavam mal
escriturados; viu tudo isto, e que era necessário dar-lhe
remédio,
compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído
por
terceira pessoa na direcção dos seus
negócios.
Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso
talismã,
agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em
segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.
[30]
A alma
«Mamã, nem todas as crianças que morrem
vão para o Paraíso. O outro dia
vi levar para o cemitério um menino que tinha morrido; o seu
papá e as
suas duas irmãzinhas acompanhavam o caixão, e
choravam tanto que me
fazia pena. Iam a chorar porque aquele menino tinha sido mau,
não é
verdade?»
«Não; naturalmente foi sempre bom, e a sua alma,
enquanto choravam seus
pais e suas irmãs, já estava vivendo feliz no
Paraíso.»
«A alma? mamã; não sei o que
é; não compreendo bem.»
«Maria, acabas de me dizer que tiveste pena de ver chorar as
duas
pequerruchas.»
«Tive sim, mamã, tive muita pena.»
«Ora bem, o que é que no teu corpo estava
desconsolado e triste? eram os
braços?»
«Não, mamã.»
«Eram as orelhas?»
«Oh! não mamã, era cá
dentro.»
«Esse lá dentro, Maria,
é a tua alma que se alegra ou se entristece,
que te repreende quando fazes o mal, e que está satisfeita
quando
praticas o bem.
[31]
Alberto
Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu pai e seus
irmãos, que eram activos e laboriosos, plantar
árvores e fazer
sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um
único
feijão produzir cem feijões e muitas vezes mais,
e de uma talhada de
batata nascerem quarenta batatas magníficas; sabia que a
terra pagava
com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um dia achou uma libra no
quarto do pai, e foi enterrá-la imediatamente no seu
jardinzinho. «Há-de
nascer uma árvore, dizia ele consigo, que dará
libras como uma
cerejeira dá cerejas, e irei entregá-las ao
papá, que ficará muito
contente.» Todas as manhãs ia ver se a libra tinha
nascido, mas não
rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda a parte.
Por
fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.
«Vi papá; achei-a e fui
semeá-la.»
«Como, semeá-la? doido! julgas talvez que vai
nascer como uma couve?»
«Mas, papá, ouvi dizer que o oiro se encontrava na
terra.»
«É verdade, mas não nasce como uma
semente; o oiro não tem vida.»
[32]Desenterrou-se a
libra, e Alberto foi castigado por dispor do que lhe
não pertencia.
Há contudo, meus filhos, uma maneira de semear o oiro,
fazendo-lhe
produzir os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como
é? É dando-o aos pobres. Faz-se no
Paraíso a colheita dessa sementeira.
[33]
A
canção da cerejeira
Disse Deus na Primavera: «Ponham a mesa às
lagartas!» E a cerejeira
cobriu-se imediatamente de folhas, milhões de folhas,
fresquinhas e
verdejantes.
A lagarta, que estava dormindo dentro de casa, acordou,
espreguiçou-se,
abriu a boca, esfregou os olhos e pôs-se a comer
tranquilamente as
folhinhas tenras, dizendo: «Não se pode a gente
despegar delas. Quem é
que me arranjou este banquete?»
Então Deus disse de novo: «Ponham a mesa
às abelhas!» E a cerejeira
cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores
delicadas e
brancas.
E a abelha matinal aos primeiros raios da aurora pousou sobre elas,
dizendo: «Vamos tomar o nosso café; e que
chávenas tão bonitas em que o
deitaram!»
Provou com a linguita, exclamando: «Que deliciosa bebida!
Não pouparam o
açúcar!»
No Verão disse Deus: «Ponham a mesa aos
passarinhos!» E a cerejeira
cobriu-se de mil frutos apetitosos e vermelhos.
[34]«Ah! ah!
exclamaram os passarinhos, foi em boa ocasião; temos
apetite,
e isto dar-nos-á novas forças para podermos
cantar uma nova canção.» No
Outono disse Deus: «Levantai a mesa, já
estão satisfeitos.» E o vento
frio das montanhas começou a soprar, e fez estremecer a
árvore.
As folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a
uma, e o
vento que as lançou ao chão erguia-as novamente,
fazendo-as esvoaçar.
Chegou o Inverno e disse Deus: «Cobri o resto!» E
os turbilhões dos
ventos trouxeram a neve, sob cuja mortalha tudo dorme e descansa.
[35]
Os gigantes da montanha e
os anões da planície
Era uma vez uma família de gigantes, que viviam num castelo
na
montanha: um dos gigantes tinha uma filha de seis anos, da altura dum
álamo. Era curiosa e andava com vontade de descer
à planície a ver o que
faziam lá em baixo os homens, que de cima do monte lhe
pareciam anões.
Um belo dia, em que seu pai o gigante tinha ido à
caça e sua mãe estava
dormindo, a jovem giganta desatou a correr para um campo, onde os
jornaleiros trabalhavam. Parou surpreendida a ver a charrua e os
lavradores, coisas inteiramente novas para ela. «Oh! que
lindos
brinquedos!» exclamou. Abaixou-se e estendeu por terra o
avental, que
quase que cobriu o campo. Lançou-lhe dentro os homens, os
cavalos, a
charrua; de dois passos tornou a subir a montanha, e entrou no castelo,
onde seu pai estava a jantar.
―Que trazes aí, minha filha?» perguntou ele.
―Olhe, disse ela, abrindo o avental, que lindos brinquedos.
São os
mais bonitos que tenho visto.»
E pô-los em cima da mesa, a um e um,―os cavalos, a charrua e
os
trabalhadores, que estavam [36]todos
espantados, como formigas a quem
tivessem transportado dum formigueiro para um salão. A
gigantinha
pôs-se a bater as palmas e a rir com uma alegria doida, mas o
gigante
fez-se sério e franziu o sobrolho. «Fizeste mal,
disse-lhe ele. Isso
não são brinquedos, mas coisas e pessoas que
devem estimar-se e
respeitar-se. Mete tudo isso com cuidado no teu avental, e
põe-no
imediatamente onde o achaste; porque fica sabendo que os gigantes da
montanha, morreriam de fome, se os anões da
planície deixassem de lavrar
a terra e de semear o trigo.
[37]
A criança, a
anjo e flor
Quando morre uma criança, desce um anjo do céu,
toma-a nos braços, e
desdobrando as asas imaculadas, voa por cima de todos os
sítios que
ela amara durante a sua pequenina existência; o anjo
abaixa-se de
quando em quando para colher flores, que leva a Deus, para que
floresçam
no paraíso ainda mais belas do que tinham sido na terra.
Deus recebe
todas as flores, escolhe uma delas, toca-a com os lábios, e
a flor
escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa a cantar os
coros
maviosos dos bem-aventurados. Ora escutai o que disse o anjo a uma
criança morta, que o estava ouvindo como num sonho. Pairaram
primeiro
sobre a casa em que a criança brincara, e depois sobre
jardins
deliciosos, cobertos de flores.
«Qual é a flor que desejas para plantar no
paraíso?» perguntou o anjo.
Havia nesse jardim uma roseira que tinha sido direita, vigorosa,
magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e todos os
seus ramos cheios de
botõezinhos lindíssimos pendiam estiolados para o
chão.
«Pobre roseira! disse a criança ao anjo; vamos
buscá-la para que possa
reflorir no paraíso.»
[38]O anjo foi
buscá-la, e abraçou a criança.
Colheram muitas flores
brilhantes, boninas humildes e violetas silvestres.
A colheita estava terminada, e contudo não voavam ainda para
Deus. Caiu
a noite silenciosa, e a criança e o seu guia Divino andavam
ainda por
cima da grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais estreitas, cheia
de cacos de louça, de vidros partidos, de farrapos, de toda
a casta de
imundície. Entre estes destroços distinguiu o
anjo um vaso de flores
com a terra pelo chão, onde pendiam as longas
raízes duma flor dos
campos, já murcha, e que parecia não poder
reverdecer: tinham-na
atirado para a rua como inútil e morta.
«Vale a pena levantá-la disse o anjo; levemo-la, e
pelo caminho, voando,
te contarei a história da florinha. Lá ao fundo,
lá ao fundo, naquela
rua estreita e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança
miserável e
doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia conseguir era passear
com a ajuda das muletas ao longo de seu pequenino quarto. Em certos
dias
de Verão os raios do sol visitavam-lhe a alcova, durante
meia hora.
Então a criança sentada à janela,
aquecida pelo sol, sem o cansaço do
andar, imaginava-se passeando; não conhecia da floresta, da
fresca
verdura da primavera, senão o ramo de faia, que uma vez o
filho do
vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima da cabeça
o ramo
verdejante, e, supondo-se debaixo das árvores abrigadas do
sol, sonhava
com o doce canto dos passarinhos. Um dia o filho do vizinho trouxe-lhe
flores do campo, e por acaso entre elas apareceu uma que tinha ainda
raízes; [39]o
pequerrucho plantou-a num vaso, e pô-lo à janela,
junto da
cama. A flor plantada por mão abençoada, cresceu,
tornou-se grande, e
todos os anos dava novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu
único
tesouro neste mundo; regava-a, tratava-a, adorava-a; fazia-lhe
aproveitar os raios do sol até ao último. A flor
aparecia-lhe em
sonhos, porque era para ele que floria, que espalhava o seu aroma e
ostentava as suas cores; quando se sentiu morrer foi para ela que se
voltou.
«Faz hoje um ano que esse pequerrucho habita no
paraíso; a sua querida
flor, esquecida à janela desde então, murchou,
estiolou-se e
atiraram-na à rua finalmente. E contudo esta flor quase seca
é o
tesouro do nosso ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os
canteiros dum jardim realengo.»
«Como sabes tu isso?» perguntou a
criança, que o anjo levava para o céu.
―Sei-o, respondeu o anjo, porque era eu o pequenino doente que andava
em muletas; como não havia de eu reconhecer a minha flor bem
amada!»
A criança abriu os olhos, e viu a radiosa figura do anjo
quando entravam
no céu onde tudo era alegria e felicidade. Deus pegou nas
flores,
levou-as ao coração, mas a que ele beijou foi a
florinha silvestre,
desprezada e murcha: a flor adquiriu voz imediatamente,
pôs-se a cantar
com as almas que rodeiam o Criador, umas junto dele, outras ao longe,
formando círculos que vão aumentando
sucessivamente, multiplicando-se
até ao infinito, povoados de [40]seres
inteiramente felizes, cantando todos
harmoniosamente―desde a criança abençoada
até à humilde florinha do
campo, levantada do lodo, dentre os tristes despojos da rua sombria e
tortuosa.
[41]
Presente por presente
Um grande fidalgo, que se tinha perdido numa floresta, foi dar de noite
à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda
não tinha chegado, foi
a mulher que recebeu o importante personagem. Acolheu-o o melhor que
pôde, desculpando-se da miserável hospitalidade
que lhe ia dar, porque
eram batatas cozidas a única coisa que lhe poderia oferecer;
cama não a
tinha, por conseguinte dormiria sobre a palha. Mas o estrangeiro estava
morto de fome e de fadiga; as batatas souberam-lhe mais do que
faisões,
e dormiu melhor em cima da palha do que num leito de
príncipes. Ao
outro dia pela manhã disse isto mesmo à pobre
mulher, gratificando-a ao
despedir-se com uma moeda de ouro. Mas, como o desconhecido lhe tinha
dito que a guardasse como uma pequena lembrança, a boa
camponesa julgou
que seria uma medalha, e sentiu que não tivesse um buraquito
para a
trazer ao pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa,
contou-lhe logo o
que lhe tinha acontecido, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro
examinou os cunhos e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:
[42]«Esse
forasteiro era nada mais nada menos do que o nosso príncipe!
E o bom do homem não podia conter-se de alegria, por sua
alteza ter
achado as suas batatas melhores do que faisões.
«É necessário confessar, disse ele com
um ar triunfante, que não há
talvez no mundo um terreno mais favorável do que este para a
cultura das
batatas; hei-de lhe levar um cesto delas, já que as acha
tão boas.
E partiu imediatamente para o palácio com uma
provisão de batatas
escolhidas.
Os lacaios e as sentinelas ao princípio não o
queriam deixar entrar;
mas insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir
nada, e que pelo
contrário vinha trazer alguma coisa.
Foi, pois, introduzido na sala da audiência.
«Meu senhor, disse ele ao príncipe: Vossa alteza
dignou-se recentemente
pedir hospitalidade a minha mulher, e dar-lhe uma peça de
ouro, em troca
duma enxerga miserável e de um prato de batatas cosidas. Era
pagar
demasiadamente, apesar de serdes um príncipe muito rico e
poderoso. Eis
o motivo porque eu venho trazer ainda a vossa alteza um cestito das
batatas, que vos souberam melhor do que os vossos faisões.
Dignai-vos
aceitá-las, e, se nos fizerdes de novo a honra de ser nosso
hospede, lá
as encontrareis sempre ao vosso dispor.»
A honrada simplicidade do camponês agradou ao
príncipe, e, como estava
num momento de bom humor, fez-lhe doação de uma
quinta com trinta
jeiras de terra.
[43]Ora o carvoeiro
tinha um irmão muito rico, mas invejoso e avarento, que,
sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo:
«Porque não me há
de suceder a mim outro tanto? O príncipe gosta do meu
cavalo, pelo
qual lhe pedi sessenta libras, que ele me recusou. Vou-lhe fazer
presente dele: se deu ao João uma quinta com trinta jeiras
de terra,
simplesmente por um cesto de batatas, a mim com certeza me
há de
recompensar ainda mais generosamente.»
Tirou o cavalo da estrebaria e levou-o para defronte das portas do
palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e,
atravessando com ar
altivo as alas dos lacaios, penetrou na sala da audiência.
«Ouvi dizer, disse ele, que vossa alteza gosta do meu cavalo;
não
tenho querido trocá-lo a dinheiro, mas dignai-vos
permitir-me que vo-lo
ofereça.»
O príncipe viu imediatamente onde o nosso homem queria
chegar, e disse
consigo: «Deixa estar, tratante, que te vou dar a paga que
mereces:
Depois dirigindo-se a ele:
«Aceito a tua dádiva, mas não sei como
agradecer-ta condignamente. Oh!
espera um pouco: Eis aqui um cesto de batatas mais saborosas do que
faisões. Custaram-me trinta jeiras de terra. Parece-me que
é um bom
preço para um cavalo, que eu poderia ter comprado por
sessenta libras.»
E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.
[44]
O pinheiro ambicioso
Era uma vez um pinheiro, que não estava contente com a sua
sorte. «Oh!
dizia ele, como são horrorosas estas linhas uniformes de
agulhas
verdes, que se estendem ao longo dos meus ramos! Sou um pouco mais
orgulhoso que os meus vizinhos, e sinto que fui feito para andar
vestido
de outro modo. Ah! se as minhas folhas fossem de oiro!»
O Génio da montanha ouviu-o, e no dia seguinte pela
manhã acordou o
pinheiro com folhas de oiro. Ficou radiante de alegria, e admirou-se,
pavoneou-se todo, olhando com altivez para os outros pinheiros, que,
mais sensatos do que ele, não invejavam a sua
rápida fortuna. À noite
passou por ali um judeu, arrancou-lhe todas as folhas, meteu-as num
saco, e foi-se embora, deixando-o inteiramente nu dos pés
à cabeça.
«Oh! disse ele, que doido que eu fui! não me tinha
lembrado da cobiça
dos homens. Fiquei completamente despido. Não há
agora em toda a
floresta uma planta tão pobre como eu. Fiz mal em pedir
folhas de oiro;
o oiro atrai as ambições.
Ah! se eu arranjasse um vestuário de vidro! Era [45]deslumbrante, e o judeu
avarento não me teria despido.»
No dia seguinte acordou o pinheiro com folhas de vidro, que reluziam ao
sol como pequeninos espelhos. Ficou outra vez todo contente e
orgulhoso,
fitando desdenhosamente os seus vizinhos. Mas nisto o céu
cobriu-se de
nuvens, e o vento rugindo, estalando, quebrou com a sua asa negra as
folhas de cristal.
«Enganei-me ainda, disse o jovem pinheiro, vendo por terra
todo feito em
pedaços o seu manto cristalino. O oiro e o vidro
não servem para vestir
as florestas. Se eu tivesse a folhagem acetinada das aveleiras, seria
menos brilhante, mas viveria descansado.»
Cumpriu-se o seu último desejo, e, apesar de ter renunciado
às vaidades
primitivas, julgava-se ainda assim mais bem vestido do que todos os
outros pinheiros seus irmãos. Mas passou por ali um rebanho
de cabras, e
vendo as folhas acabadas de nascer, tenrinhas e frescas, comeram-lhas
todas sem deixar uma única.
O pobre pinheiro, envergonhado e arrependido, já queria
voltar à sua
forma natural. Conseguiu ainda este favor, e nunca mais se queixou da
sua sorte.
[46]
Perfeição
das obras de Deus
A filha.―Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.
A mãe.―Vou-te dar outra.
A filha.―Como se fazem as agulhas, mamã?
A mãe.―Vê se adivinhas.
A filha.―Não sei, mamã.
A mãe.―Conheces os metais?
A filha.―Conheço mamã; tenho
lá dentro muitos bocadinhos dentro de
uma caixa.
A mãe.―Ora muito bem, diz-me
lá, as agulhas são de pau, de pedra, de
mármore?
A filha.―Oh! não; são de
metal; mas de que metal?
A mãe.―Antes de perguntar qualquer coisa,
vê sempre se a adivinhas
primeiro.
A filha.―Ora espere!... uma agulha é de
metal: não é de prata, porque
não é branca; não é de
oiro, porque não é de um lindo amarelo muito
brilhante; não é de cobre, porque não
é de um amarelo muito feio, que
cheira mal... Então é de ferro, mamã?
A mãe.―Adivinhaste.
A filha.―Mas, mamã, o ferro
não é liso e brilhante como as agulhas.
[47]A
mãe.―É que é primeiro polido
e preparado de certo modo, e depois já
se não chama ferro, é aço.
A filha.―Bem, as agulhas são de
aço. Agora quero adivinhar como é que
as fazem.
A mãe.―É
impossível, não és capaz disso; mas
hei de levar-te a uma
fábrica onde se fazem agulhas. Hás-de
vê-las fazer, e hás-de gostar
muito.
A filha.―Tinha vontade de saber como se fazem todas
as coisas de que
nos servimos.
A mãe.―Tens razão;
é uma vergonha ignorá-lo.
A filha.―Mamã, deixe-me ver as suas
agulhas.
A mãe.―Olha, aí tens o meu
estojo.
A filha.―Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que
lindas! São tão
fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há-de
ser necessária para
fazer uma coisinha tão delicada!
A mãe.―Lembras-te de ver na feira um
carrinho de marfim puxado por
uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?
A filha.―Lembro, mamã; era tão
bonito!
A mãe.―Li num jornal alemão
que um operário chamado Nerlinger fez
um copo de um grão de pimenta, e que dentro deste copo havia
mais
doze...
A filha.―Que pequeninos deviam ser os doze copos
para caberem num
grão de pimenta!
A mãe.―E ainda não
é tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas
doiradas, e sustentava-se no pé.
A filha.―Que vontade eu tinha de ver isso!
A mãe.―Tens razão de te
admirares da habilidade dos homens. É
efectivamente espantoso, e [48]deve
saber-se, o modo porque se fabricam
certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de
admiração.
A filha.―Quais, mamã?
A mãe.―Já to digo. (Levanta-se.)
A filha.―Que quer, mamã?
A mãe.―Quero que vejas o
microscópio de teu papá.
A filha.―Pois sim; eu gosto de olhar pelo
microscópio.
A mãe.―Este é
magnífico, e aumenta prodigiosamente os objectos. Vais
ver a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como
é fina,
lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?
A filha.―Meu Deus, que coisa tão feia!
Que agulha tão grosseira!
A mãe.―Vês-lhe buracos, riscos,
asperezas, não é verdade?
A filha.―Parece um prego muito grande e muito mal
feito.
A mãe.―Pois todas essas
imperfeições são verdadeiras, existem
na
agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que
não dá por elas.
A filha.―O operário que fez esta agulha
ficaria envergonhado, se a
visse ao microscópio.
A mãe.―Tiremos a agulha, e vejamos outra
coisa.
A filha.―O quê, mamã?
A mãe.―O aguilhãozinho de uma
abelha.
A filha.―Oh! que pequenino, que bonito!... Como
é liso, como é
brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio
há de acontecer o
mesmo que com a agulha.
[49]A
mãe.―Pronto: olha.
A filha (olhando).―É esquisito,
mamã!
A mãe.―Então?
A filha.―Aumentou, aumentou como a agulha, mas
não é áspero, pelo
contrario, é perfeitamente liso... A agulha parecia que
não tinha ponta,
e o ferrãozinho da abelha tem uma ponta tão fina
como um cabelo. Porque
será isto, mamã?
A mãe.―É porque o
operário que fez este aguilhão é muito
mais hábil
do que o que fez a agulha.
A filha.―Quem é esse operário
tão hábil?
A mãe.―É o mesmo que fez o
céu, os astros, a terra, as plantas e as
criaturas.
A filha.―É Deus.
A mãe.―Exactamente. Pois não
é Deus que fez as abelhas e todos os
animais?
A filha.―De certo.
A mãe.―Foi ele por conseguinte que fez o
aguilhão desta abelha; e
aí tens porque o aguilhão é superior
à agulha: é obra de Deus. Mas
continuemos a olhar pelo microscópio. Aqui está
um pedacinho de
musselina finíssima. Olha pelo microscópio; o que
é que vês?
A filha.―Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal
feita.
A mãe.―Aqui tens agora um pedacinho de
renda delicadíssima.
A filha.―Essa estou bem certa que há de
ser linda, mesmo vista pelo
microscópio.
A mãe.―Então?
A filha.―É horrorosa... Parece feita de
pelos grosseiros com grandes
buracos desiguais.
A mãe.―As obras do homem são
todas assim.
[50]A filha.―Oh!
mamã, vejamos agora as obras de Deus.
A mãe.―Sabes o que é isto?
A filha.―Sei, mamã, é um
casulo de bicho de seda.
A mãe.―Os fiozinhos que o
compõem são muito finos, muito lisos; olha
pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.
A filha (olhando pelo
microscópio).―Não, mamã; os fios
são todos
iguais, e o casulo é sempre muito liso, muito brilhante.
A mãe.―É porque é
obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há
sobre este papel?
A filha.―Pontinhos feitos com tinta e manchazinhas
redondas feitas
também com tinta.
A mãe.―Estes pontinhos e estas manchas
parecem-te perfeitamente
redondos?
A filha.―Sim, mamã, perfeitamente
redondos.
A mãe.―Vê-os agora ao
microscópio.
A filha.―Oh! já não
são redondos, são todos desiguais.
A mãe.―Tira o papel; vejamos a obra de
Deus. É uma asa de borboleta;
vês que está mosqueada de pequeninas manchas
redondas; olha pelo
microscópio; o que é que vês?
A filha.―Vejo a mesma coisa que via sem o vidro,
só com a diferença
que agora é maior. Que belas que são as obras de
Deus!
A mãe.―Merece bem a pena
estudá-las.
A filha.―De certo. Farei sempre por isso,
comparando-as com as obras
dos homens.
A mãe.―E sempre e em tudo
hás-de encontrar defeitos nas obras do
homem, enquanto que [51]as
obras de Deus, quanto mais se observam, mais
perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a
primeira é que Deus merece tanto a nossa
admiração como o nosso amor; a
segunda é que os homens orgulhosos são
insensatos, porque não podem
fazer nada perfeitamente belo, perfeitamente regular, e as suas obras
mais primorosas são cheias de
imperfeições, se as compararmos com as
obras do Criador.
[52]
João e os seus
camaradas
Era uma vez uma viúva com um filho único. Ao cabo
dum Inverno rigoroso,
possuía apenas um galo, e meio alqueire de farinha.
João resolveu-se a
correr mundo, à busca de fortuna. A mãe cozeu o
resto da farinha, matou
o galo, e disse-lhe:
«O que é que preferes: metade desta merenda com a
minha bênção, ou toda
com a minha maldição?»
«Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros
há no
mundo eu quereria a tua maldição.»
«Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente.
Leva tudo, e Deus te
abençoe.»
E partiu. Foi andando, andando, até que encontrou um
jumento, que tinha
caído num atoleiro, donde não podia sair.
«Oh! João, exclamou o burro, tira-me daqui, que
estou quase a
afogar-me.»
«Espera, respondeu João.»
E, formando uma ponte com pedras e ramos de árvores,
conseguiu tirar o
quadrúpede do atoleiro.
[53]«Obrigado,
disse-lhe ele, aproximando-se de João. Se te posso ser
útil,
aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?»
―«Vou por esse mundo fora, a ver se ganho a minha
vida.»
«Queres tu que eu te acompanhe?
«Anda daí.»
E puseram-se a caminho.
Ao passarem por uma aldeia, viram um cão perseguido pelos
rapazes da
escola, que lhe tinham atado ao rabo uma chocolateira velha. O pobre
animal correu para João que o acariciou, e o jumento
pôs-se a ornear de
tal maneira, que os rapazes com o medo deitaram todos a fugir.
«Obrigado, disse o rafeiro a João. Se para alguma
coisa te for
prestável, aqui me tens às tuas ordens. Aonde
vais tu?»
«Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha
vida.»
«Queres que te acompanhe?»
«Anda daí.»
Quando saíram da aldeia pararam junto duma fonte. O pequeno
tirou a
merenda do alforge, e repartiu-a com o cão. O burro pastou
alguma erva
que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato esfaimado a miar
lastimosamente.
Coitado, exclamou João!» E deu-lhe uma asa do
frango.
―«Obrigado disse o gato. Oxalá que um dia eu te
possa ser útil. Aonde
vais tu?
―«Procurar trabalho. Se queres, anda connosco.»
―De boa vontade.
[54]Os quatro viajantes
puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um
grito dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um
galo na boca.
«Agarra! agarra!» bradou o pequeno ao
cão.
E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da
raposa, que, vendo-se em
perigo, largou o galo para correr melhor. O galo saltando de contente
disse a João:
―«Obrigado. Salvas-te-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde
vais tu?»
―Arranjar trabalho. Queres vir connosco?
―«De boa vontade.»
―Então anda. Se te cansares, empoleira-te no
jumento.»
Os viajantes continuaram a jornada com o seu novo companheiro.
Sentiram-se todos fatigados e não avistavam à
roda nem uma quinta, nem
uma cabana.
―«Paciência, disse João, outra vez
seremos mais felizes. Resignemo-nos
hoje a dormir ao ar livre; além disso a noite
está sossegada, e a relva
é macia.»
Dito isto estendeu-se no chão; o jumento deitou-se ao lado
dele, o cão
e o gato aninharam-se entre as pernas do burro complacente, e o galo
empoleirou-se numa árvore.
Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o
galo começou
a cantar.
―«Que demónio! disse o jumento acordando todo
zangado. Porque é que
estás a gritar?»
―«Porque já é dia, respondeu o galo.
Não vês ao longe a luz da
madrugada, que vem rompendo?»
[55]―«Vejo
uma luz, disse João, mas não é do sol,
é duma lanterna.
Provavelmente há ali alguma casa, onde nos
poderíamos recolher o resto
da noite.»
Foi aceita a proposta. Partiu a caravana; foi andando, andando,
através
dos campos, até que parou junto da casa do guarda dum grande
castelo,
donde subiam gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e
blasfémias horríveis.
―Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito devagarinho,
a ver quem
é que está lá dentro.»
Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se
banqueteavam
alegremente, sentados a uma mesa principesca.
―«Que bom assalto acabámos de dar, disse um deles,
ao castelo do
conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem que
é este
porteiro. À sua saúde!»
―«À saúde do nosso amigo!»
repetiram em coro todos os ladrões.
E dum trago despejaram os copos.
João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz
baixa:
―«Uni-vos uns aos outros o melhor que puderdes, e, assim que
vos der
sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa gritaria
diabólica.»
O burro, levantando-se nas patas traseiras, lançou as
mãos ao peitoril
duma janela, o cão trepou-lhe à
cabeça, o gato à cabeça do
cão e o
galo à cabeça do gato. João deu o
sinal, e estoirou à uma o ornear do
jumento, os latidos do cão, o miar do gato e os gritos
estridentes do
galo.
[56]―«Agora,
bradou João, fingindo que comandava um destacamento,
carregar
armas! Dai-me cabo dos ladrões; fogo!»
No mesmo instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando
cada vez mais; os ladrões atemorizados refugiaram-se no
bosque, saindo
precipitadamente por uma porta falsa.
João e os seus companheiros penetraram na sala abandonada,
comeram um
excelente jantar, e deitaram-se em seguida―João numa cama, o
burro na
cavalariça, o cão numa esteira ao pé
da porta, o gato junto do fogão e
o galo num poleiro.
Ao principio os ladrões ficaram muito contentes, por se
verem sãos e
salvos na floresta. Mas depois, começaram a reflectir.
―«Era bem melhor a minha cama, do que esta erva
tão húmida, disse um
deles.»
―«Tenho pena do frango que eu começava a saborear,
disse um outro.»
―«E que rico vinho aquele! acrescentou o terceiro.»
―«E o que é mais lamentável, exclamou
um quarto, é ficar-nos lá todo o
dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde, tínhamos
tirado das
gavetas.»
―Vou ver se torno lá a entrar!
disse o capitão.
―Bravo! exclamaram os ladrões.
E pôs-se a caminho.
Já não havia luz na casa; o capitão
entrou às apalpadelas, e dirigiu-se
para o fogão; o gato saltou-lhe à cara e
esfarrapou-lha com as garras.
[57]Soltou um grito
doloroso, correu para a porta, mas infelizmente pisou o
rabo do cão, que lhe deu uma grande dentada. Gritou de novo,
e conseguiu
por fim transpor o limiar da porta. Mas quando ia a sair, o galo
atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com as unhas.
―Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão, como poderei
eu sair!»
Julgou encontrar refúgio na estrebaria; mas o burro
atirou-lhe uma
parelha de coices, que o deitou quase morto ao meio do chão.
Passado algum tempo veio a si; apalpou o corpo, viu que não
tinha nem
pernas nem braços partidos, ergueu-se e tornou para a
floresta.
―Então? então?―perguntaram-lhe os camaradas assim
que o viram.
―Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma cama para
me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste
corpo, que o trago
num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na cozinha fui
assaltado
por uma velha que estava a cardar lã, e arrumou-me na cara
com o
sedeiro, deixando-me neste miserável estado. Quando ia a
sair a porta,
um demónio dum remendão atravessou-me as pernas
com a sovela. Logo
depois Satanás em pessoa atirou-se a mim,
despedaçando-me com as garras.
Na estrebaria deram-me uma paulada que me ia matando. Se
vocês me não
acreditam, vão lá, e experimentem.»
―Acreditamos, disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo
ensanguentado: Não seremos nós que lá
tornaremos.»
Pela manhã, João e os seus camaradas
almoçaram [58]ainda excelentemente,
e
partiram em seguida para restituir ao conde o dinheiro que os
ladrões
lhe tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos,
com que carregou o jumento. Foram andando, andando, até que
chegaram à
porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do porteiro, com
uma libré esplêndida, meias de seda,
calções escarlates e cabelo
empoado.
Olhou com ar de desprezo para a pequenina caravana, e disse a João:
―Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os
recolher, vão-se embora.»
―Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono
do castelo far-nos-á
um bom acolhimento.
―Fora daqui vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a
andar imediatamente, quando não atiro-lhes já
às pernas os meus cães de
fila.»
―Perdão, só um instante, replicou o galo
empoleirado na cabeça do
jumento; não me poderias dizer quem é que abriu
aos ladrões na noite
passada a porta do castelo?»
O porteiro corou. O conde que estava à janela, disse-lhe:
―Ó Bernabé, responde ao que esse galo te acaba de
perguntar.
―Senhor, replicou Bernabé, este galo é um
miserável. Não fui eu que
abri a porta aos seis ladrões.
―Como é então, meu velhaco, tornou o conde, que
tu sabes que eram seis?
Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o [59]dinheiro roubado,
pedindo-lhe unicamente que nos dê de jantar e nos recolha
esta noite,
porque vimos cansados do caminho.
―Ficai certos que sereis bem tratados.
O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato
ficou na
cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o
dos pés à
cabeça com um vestuário magnífico,
deu-lhe um relógio de ouro, e
disse-lhe:
―Queres ficar comigo? És esperto e honrado, serás
o meu intendente.»
João aceitou a proposta, e mandou vir a sua velha
mãe para o pé de si.
Casou depois com uma linda rapariga, e viveu sempre
felicíssimo.
[60]
O rabequista
Em tempos muito remotos os habitantes duma grande cidade levantaram uma
igreja magnífica a Santa Cecília, padroeira dos
músicos.
As rosas mais vermelhas e os lírios mais cândidos
enfeitavam o altar. O
vestido da santa era de filigrana de prata e os sapatinhos eram de
oiro,
feitos pelo melhor ourives que havia na cidade. A capela estava
constantemente cheia de peregrinos e devotos. Uma vez foi lá
em romaria
um pobre rabequista, pálido, magro, escaveirado. Como a
jornada tinha
sido muito longa, estava cansado, e já no seu alforge
não havia pão nem
dinheiro no bolso para o comprar.
Assim que entrou na capela, começou a tocar na sua rabeca
com tal
suavidade, com tanta expressão, que a santa ficou
enternecida ao vê-lo
tão pobre e ao escutar aquela música deliciosa.
Quando terminou, Santa
Cecília abaixou-se, descalçou um dos seus ricos
sapatos de ouro, e deu-o
ao pobre músico, que tonto de alegria, dançando,
cantando, chorando,
correu à loja dum ourives para lho vender. O ourives,
reconhecendo o
sapato da santa, prendeu o pobre rabequista e levou-o à
presença [61]do
juiz. Instauraram-lhe processo, julgaram-no, e foi condenado
à morte.
Chegara o dia da execução. Os sinos dobravam
lastimosamente, e o cortejo
pôs-se em marcha ao som dos cânticos dos frades,
que ainda assim não
chegavam a dominar os sons da rabeca do condenado, que pedira, como
última graça, o deixarem-lhe tocar na sua rabeca
até ao último momento.
O cortejo chegou defronte da capela da santa, e quando pararam
suplicou o triste desgraçado, que o levassem lá
dentro para tocar a sua
derradeira melodia.
Os padres e os chefes da escolta consentiram, e o rabequista entrou,
ajoelhou aos pés da santa, e debulhado em
lágrimas começou a tocar.
Então o povo, maravilhado e aterrado, viu Santa
Cecília curvar-se de
novo, descalçar o outro sapato e metê-lo nas
mãos do infeliz músico. À
vista deste milagre, todos os assistentes, levaram em triunfo o
rabequista, coroaram-no de flores, e os magistrados vieram solenemente
prestar-lhe as mais honrosas homenagens.
[62]
Os pêssegos
Um lavrador que tinha quatro filhos trouxe-lhes um dia cinco
pêssegos
magníficos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes
frutos,
extasiaram-se diante das suas cores e da fina penugem que os cobria.
À
noite o pai perguntou-lhes:
―Então comeram os pêssegos?
―Eu comi, disse o mais velho. Que bom que era! Guardei o
caroço, e
hei-de plantá-lo para nascer uma
árvore.»
―Fizeste bem, respondeu o pai, é bom ser
económico e pensar no futuro.»
―Eu, disse o mais novo, o meu pêssego comi-o logo, e a
mamã ainda me deu
metade do que lhe tocou a ela. Era doce como mel.»
―Ah! acudiu o pai, foste um pouco guloso, mas na tua idade
não admira;
espero que quando fores maior te hás-de corrigir.»
―Pois eu cá, disse um terceiro, apanhei o caroço
que o meu irmão deitou
fora, quebrei-o, e comi o que estava dentro, que era como uma noz.
Vendi
o meu pêssego, e com o dinheiro hei de comprar coisas quando
for à
cidade.»
O pai meneou a cabeça:
[63]―Foi uma ideia
engenhosa, mas eu preferia menos cálculo.
―E tu, Eduardo, provaste o teu pêssego?
―Eu, meu pai, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso vizinho,
ao Jorge, que está coitadinho com febre. Ele não
o queria, mas
deixei-lho em cima da cama, e vim-me embora.
―Ora bem, perguntou o pai, qual de vós é que
empregou melhor o pêssego
que eu lhe dei?
E os três pequenos disseram à uma:
―Foi o mano Eduardo.
Este no entanto não dizia palavra, e a mãe
abraçou-o com os olhos
arrasados de lágrimas.
[64]
A urna das
lágrimas
Era uma vez uma viúva, que tinha uma filhinha muito linda, a
quem
adorava sobre todas as coisas. Não se separava dela um
só momento; mas
um dia a pobre pequerrucha começou a sofrer, adoeceu e
morreu. A
desditosa mãe, que tinha passado as noites e os dias, sem
repousar um
momento, à cabeceira da filha, julgou endoidecer de
mágoa e de saudades.
Não comia, não fazia senão chorar e
lamentar-se. Uma noite em que estava
acabrunhada, chorando no mesmo sítio em que a filha tinha
morrido,
abriu-se de repente a porta do quarto e viu-a aparecer a ela, a sua
querida filha, sorrindo com uma expressão
angélica e trazendo nas mãos
uma urna, que vinha cheia até às bordas.
―«Oh! minha querida mãe, disse-lhe ela,
não chores mais. Olha, o anjo
das lágrimas recolheu as tuas nesta urna. Se chorares mais,
transbordará, e as tuas lágrimas
correrão sobre mim, inquietando-me no
túmulo e perturbando a minha felicidade no
paraíso.
A pequenina desapareceu, e a mãe não tornou a
chorar para a não
afligir.
[65]
Reconhecimento e
ingratidão
Os vossos filhos serão para vós como
vós tiverdes sido para vossos pais.
E é natural. As crianças vêem
diariamente o que fazem seus pais, e
imitam-nos. Justifica-se desta maneira o provérbio que
diz,―que a
bênção ou a
maldição dum pai cai sobre a cabeça de
seus filhos,
terminando sempre por se realizar. Citaremos dois exemplos, que merecem
ser meditados.
Um príncipe, passeando no campo, viu um pobre homem, que
andava muito
satisfeito, a lavrar a terra. Pôs-se a conversar com ele.
Depois
de algumas perguntas, soube que o campo não pertencia ao
homem, mas que
trabalhava nele mediante um salário de doze
vinténs por dia. O
príncipe, que para as suas despesas de
administração e
representação
necessitava de quantias avultadas, custou-lhe ao principio a perceber,
como se vivia com doze vinténs diários,
andando-se ainda por cima
satisfeito. Manifestou o seu espanto ao aldeão, que lhe
respondeu:
«Gasto diariamente comigo a terça parte dessa
quantia; outro terço é
para pagar as minhas dividas; [66]e
o resto é para ir juntando algumas
economias.»
Era um novo enigma para o príncipe. Mas o alegre
camponês explicou-lho
deste modo.
«Reparto quanto ganho com os meus velhos pais, que
já não podem
trabalhar, e com os meus filhos, que ainda não têm
força para isso. Aos
primeiros pago-lhes o amor de que me deram tantas provas na minha
infância; e espero que os segundos não me
abandonem, quando os anos
tiverem pesado sobre mim.»
O príncipe, ouvindo isto, quis premiar o honrado
camponês; encarregou-se
da educação de seus filhos; e a
bênção que lhe deram os seus velhos
pais, os seus filhos merecerem-na depois pela sua vez, rodeando
igualmente a sua velhice de cuidados piedosos e da mais terna
dedicação.
Mas posso desgraçadamente citar-vos outro filho, que
procedeu duma
maneira tão indigna com seu velho pai doente e aleijado, que
este teve
de pedir que o levassem para o hospital da misericórdia. O
filho ingrato
recebeu com alegria o desejo do infeliz velho, que nessa mesma tarde
foi conduzido ao hospital. Como este estabelecimento de caridade fosse
muito pobre, decidiu-se o velho a mandar pedir a seu filho, como
última
esmola, um par de lençóis, para cobrir a palha
que lhe servia de leito.
O mau filho escolheu os lençóis mais usados, e
disse ao seu pequeno, de
dez anos de idade, que os fosse levar a esse velho rabujento.
Mas
notou que a criança ao partir tinha escondido um dos
lençóis a um canto,
atrás da porta.
[67]Quando voltou
perguntou-lhe o pai, porque fizera aquilo.
«Foi, respondeu a criança desabridamente, para me
servir mais tarde
deste lençol, quando pela minha vez te mandar
também para o hospital.
[68]
O fato novo do
sultão
Era uma vez um sultão, que despendia em vestuário
todo o seu rendimento.
Quando passara revista ao exercito, quando ia aos passeios ou ao
teatro, não tinha outro fim senão mostrar os seus
fatos novos. Mudava
de traje a todos os instantes, e como se diz dum rei: Está
no conselho;
dizia-se dele: Está-se a vestir. A capital do seu reino era
uma cidade
muito alegre, graças à quantidade de estrangeiros
que por ali passavam;
mas chegaram lá um dia dois larápios, que,
dando-se por tecelões,
disseram que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo.
Não
só eram extraordinariamente belos os desenhos e as cores,
mas além
disso os vestuários feitos com esse estofo,
possuíam uma qualidade
maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e para
todos
aqueles que não exercessem bem o seu emprego.
―São vestuários impagáveis, disse
consigo o sultão; graças a eles,
saberei distinguir os inteligentes dos tolos, e reconhecer a capacidade
dos ministros. Preciso desse estofo!»
E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães [69]uma quantia avultada,
para que pudessem começar os trabalhos imediatamente.
Os homens levantaram com efeito dois teares, e fingiram que
trabalhavam, apesar de não haver absolutamente nada nas
lançadeiras.
Requisitavam seda e oiro fino a todo o instante; mas guardavam tudo
isso
muito bem guardado, trabalhando até à meia noite
com os teares vazios.
―«Preciso saber se a obra vai adiantada».
Mas tremia de medo ao lembrar-se que o estofo não podia ser
visto pelos
idiotas. E, apesar de ter confiança na sua
inteligência, achou prudente
em todo o caso mandar alguém adiante.
Todos os habitantes da cidade, conheciam a propriedade maravilhosa do
estofo, e ardiam em desejos de verificar se seria exacto.
―Vou mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o
sultão; tem um
grande talento, e por isso ninguém pode melhor do que ele
avaliar o
estofo.
O honrado ministro entrou na sala em que os dois impostores trabalhavam
com os teares vazios.
―Meu Deus! disse ele consigo arregalando os olhos, não vejo
absolutamente nada!» Mas no entanto calou-se. Os dois
tecelões
convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a sua opinião
sobre os
desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava,
olhava, mas não via nada, pela razão
simplicíssima de nada lá existir.
―Meu Deus! pensou ele, serei realmente estúpido?
É necessário que
ninguém o saiba!... Ora esta! Pois serei tolo realmente! Mas
lá
confessar que não vejo nada, isso é que eu
não confesso.»
[70]«Então
que lhe parece?» perguntou um dos tecelões:
―«Encantador, admirável! respondeu o ministro,
pondo os óculos. Este
desenho... estas cores... magnífico!... Direi ao
sultão que fiquei
completamente satisfeito.»
―«Muito agradecido, muito agradecido», disseram os
tecelões; e
mostraram-lhe cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe
deles uma
descrição minuciosa. O ministro ouviu
atentamente, para ir depois
repetir tudo ao sultão.
Os impostores requisitavam cada vez mais seda, mais prata e mais oiro;
precisavam-se quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no
bolso, é claro; o tear continuava vazio, e apesar disso
trabalhavam
sempre.
Passado algum tempo, mandou o sultão um novo
funcionário, homem
honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu a
este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e
não
via nada.
―Não acha um tecido admirável?»
perguntaram os tratantes, mostrando o
magnífico desenho e as belas cores, que tinham apenas o
inconveniente
de não existir.
―Mas que diabo! Eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois
não serei
eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito! mas
deixá-lo, não o
deixo eu.»
Em seguida elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua
admiração pelo
desenho e o bem combinado das cores.
―É duma magnificência incomparável,
disse [71]ele ao
sultão. E toda a
cidade começou a falar desse tecido
extraordinário.
Enfim o próprio sultão quis vê-lo
enquanto estava no tear. Com um grande
acompanhamento de pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois
honrados funcionários, dirigiu-se para as oficinas, em que
os dois
velhacos teciam continuamente, mas sem fios de seda, nem de oiro, nem
de
espécie alguma.
―Não acha magnífico? disseram os dois honrados
funcionários. O desenho
e as cores são dignos de vossa alteza.»
E apontaram para o tear vazio, como se as outras pessoas que ali
estavam
pudessem ver alguma coisa.
―Que é isto! disse consigo mesmo o sultão,
não vejo nada! É horrível!
serei eu tolo, incapaz de governar os meus estados? Que
desgraça que me
acontece!» Depois de repente exclamou:
«É magnífico! Testemunho-vos a
minha satisfação.»
E meneou a cabeça com um ar satisfeito, e olhou para o tear,
sem se
atrever a declarar a verdade. Todas as pessoas de seu
séquito olharam do
mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem ver coisa alguma,
e no entanto
repetiam como o sultão: «É
magnífico!» Até lhe aconselharam a que
se
apresentasse com o fato novo no dia da grande procissão.
«É magnífico! é
encantador! é admirável!» exclamavam
todas as bocas, e a satisfação era
geral.
Os dois impostores foram condecorados e receberam o titulo de fidalgos
tecelões.
Na véspera do dia da procissão passaram a noite
em claro, trabalhando à
luz de dezasseis velas. [72]Finalmente
fingiram tirar o estofo do tear,
cortaram-no com umas grandes tesouras, coseram-no com uma agulha sem
fio,
e declararam, depois disto, que estava o vestuário
concluído.
O sultão com os seus ajudantes de campo foi
examiná-lo, e os impostores
levantando um braço, como para sustentar alguma coisa,
disseram:
«Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve
como uma teia de aranha;
é a principal virtude deste tecido.»
―Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.
―Se vossa alteza se dignasse despir-se, disseram os
larápios,
provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.»
O sultão despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe
as calças,
depois a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se
defronte do
espelho.
―Como lhe fica bem! que talhe elegante! exclamaram todos os
cortesãos.
Que desenho! que cores! que vestuário
incomparável!»
Nisto entrou o grão-mestre de cerimónias.
―Está à porta o dossel sobre que vossa alteza
deve assistir à procissão,
disse ele.»
―Bom! estou pronto, respondeu o sultão. Parece-me que
não vou mal.»
E voltou-se ainda uma vez diante do espelho, para ver bem o efeito do
seu esplendor. Os camaristas que deviam levar a cauda do manto,
não
querendo confessar que não viam absolutamente nada, fingiam
arregaçá-la.
E, enquanto o sultão caminhava altivo sob um [73]dossel deslumbrante, toda a
gente na rua e às janelas exclamava: «Que
vestuário magnífico! Que
cauda tão graciosa! Que talhe elegante!»
Ninguém queria dar a perceber,
que não via nada, porque isso equivalia a confessar que se
era tolo.
Nunca os fatos do sultão tinham sido tão
admirados.
―Mas parece que vai em cuecas», observou um pequerrucho, ao
colo do
pai.
―É a voz da inocência, disse o pai.
―Há ali uma criança que diz que o
sultão vai em cuecas.
«Vai em cuecas! vai em cuecas!» exclamou o povo
finalmente.
O sultão ficou muito aflito porque lhe pareceu que realmente
era
verdade. Entretanto tomou a enérgica
resolução de ir até ao fim, e os
camaristas submissos continuaram a levar com respeito a cauda
imaginária.
[74]
Boa sentença
Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro dum alforge uma
quantia em oiro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil
réis
de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em
casa um honrado
camponês levando o alforge. O nosso homem contou o dinheiro,
e disse:
―Deviam ser oitocentos mil réis, que foi a quantia que eu
perdi; no
alforge encontro apenas setecentos; vejo, meu amigo, que recebeste
adiantados os cem mil réis de alvíssaras: estamos
pagos por conseguinte.»
O bom camponês, que nem por sombras tocara no dinheiro,
não podia nem
devia contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o
juiz,
que, vendo a má fé do avarento, deu a seguinte
sentença:
―Um de vós perdeu oitocentos mil réis; o outro
encontrou um alforge
apenas com setecentos: Resulta daí claramente que o dinheiro
que o
último encontrou não pode ser o mesmo a que o
primeiro se julga com
direito. Por consequência tu, meu bom homem, leva o dinheiro
que
encontraste, [75]e
guarda-o até que apareça o indivíduo
que perdeu somente
setecentos mil réis. E tu, o único conselho que
passo a dar-te, é que
tenhas paciência até que apareça
alguém que tenha achado os teus
oitocentos mil réis.
[76]
Os animais agradecidos
Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou uma vez um homem a quem
perguntou como se chamava, de donde era, e que oficio tinha. Este
respondeu:
―«Senhor: eu sou um desgraçado, um
miserável; nasci no vosso reino, e
chamo-me Ingratidão.»
―«Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei,
tomava-te ao meu
serviço.»
O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o seguisse.
Desde que chegaram a palácio, deu tais provas de habilidade,
mostrou-se
tão esperto e tão solícito, que o rei
afeiçoou-se-lhe de tal modo, que
o nomeou seu intendente, confiando-lhe a
administração da sua casa.
Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu
orgulho desde então não
conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha
compaixão dos
desventurados.
Ora, na vizinhança do palácio havia uma floresta
cheia de animais
selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou
aí fazer por toda a
parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras,
caindo
dentro, pudessem ser agarradas. [77]Um
dia que o intendente atravessava a
floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos
orgulhosos, que se
precipitou ele mesmo dentro duma das covas.
Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo
poço; caiu depois um
lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto horroroso. O
governador, ao ver-se em tão extraordinária
companhia, ficou tão
horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a
esperança de
salvação lhe parecia inteiramente perdida, porque
por mais que gritasse,
ninguém o vinha socorrer.
Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre,
chamado António, que todos os dias ia rachar lenha
à floresta, para
ganhar o pão necessário à sua mulher e
aos seus filhos. António também
lá foi nesse dia, como de costume, e pôs-se a
trabalhar não longe da
cova em que caíra o intendente, cujos gritos de
aflição não tardou a
ouvir. O pobre rachador aproximou-se e perguntou, quem era que estava
ali.
―«Sou o governador do palácio do rei, e, se me
tirares daqui, prometo
encher-te de riquezas; estou em companhia dum leão, dum lobo
e duma
enorme serpente.»
―«Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável
jornaleiro, não tendo para
sustentar a minha família, mais que o produto do meu
trabalho; bastava
um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê
lá pois, se
cumpres a tua promessa?
O intendente continuou:
―«Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor,
[78]juro-te que
cumprirei a minha palavra.»
Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou
com uma corda
muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão
atirou-se a
ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era
o intendente.
Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a
maior
amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque
tinha fome.
António deitou outra vez a corda ao fundo do
poço, e, julgando tirar o
governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez
subiu a
serpente; foi necessário fazer uma quarta tentativa, para
sair o
governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e
partiu a correr
para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou
à mulher tudo o
que se tinha passado, não lhe esquecendo, é
claro, as brilhantes
promessas do intendente. No dia seguinte logo pela manhã,
foi o pobre
homem bater à porta do palácio. O porteiro
perguntou-lhe o que queria.
―«Faça-me o favor, respondeu o rachador de dizer a
s.ex.ª o intendente
que o homem com quem ele esteve ontem na floresta lhe deseja
falar.»
O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se, e exclamou:
―«Vai dizer a esse homem, que eu não vi
ninguém na floresta; que se
ponha a andar, porque o não conheço.»
O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.
O pobre homem tornou para casa mui descorçoado, [79]e contou à
mulher a
odiosa perfídia de que tinha sido vitima.
A mulher disse-lhe:
―«Tem paciência; o sr. intendente estava hoje
decerto muito ocupado, e
foi talvez por isso que te não pôde
receber.»
Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu
esperanças.
Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo
à porta do palácio.
Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que
não tornasse
ali a aparecer, quando não ver-se-ia obrigado a empregar
meios
violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:
―«Experimenta terceira e última vez, disse-lhe
ela, talvez Deus o
inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe,
não penses mais
nisso.»
No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o
porteiro
consentido à força de suplicas em
anunciá-lo ainda ao governador, este
encolerizado atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre
homem duma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do
chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com
um
burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa: As
feridas
levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, vendo-se
obrigado a contrair dividas para pagar ao médico. Quando
finalmente
tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o
costume para
fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o
leão, que ele
tinha ajudado a sair do poço. O leão conduzia um
burro diante de si, e
[80]este burro estava
carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão,
vendo António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de
respeitoso
agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal
de que ficasse com o jumento. António doido de alegria levou
o animal
para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.
No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o
lobo, que
o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto
lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e
tinha carregado
o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha
tirado do fôjo, e que trazia na ponta da língua
uma pedra preciosa, em
que brilhavam três cores,―o branco, o preto e o vermelho.
Quando a
serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a
pedra junto
dele, e depois dando um salto desapareceu no matagal.
António
levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que
propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho,
afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este,
assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia.
António respondeu-lhe que a não queria vender,
mas simplesmente saber se
seria boa.
O velho respondeu:
―«São três as virtudes desta pedra:
abundância contínua, alegria
imperturbável e luz sem trevas. Se alguém ta
comprar por menos dinheiro
do que vale, tornará imediatamente para a tua
mão.»
António ficou muito contente com esta resposta, [81]agradeceu ao velho da
ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a
sua felicidade. Como
se imagina, graças à virtude da famosa pedra,
não lhe faltaram daí em
diante, nem honras nem riquezas.
Tendo chegado aos ouvidos do rei a noticia destas prosperidades, mandou
chamar António, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso
talismã.
António, vendo que semelhante desejo era uma ordem,
respondeu:
―«Devo prevenir a vossa majestade de que, se esta pedra me
não for paga
pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.»
―«Hei de pagar-ta bem, disse o rei.»
E mandou-lhe dar trinta mil libras em oiro. No dia seguinte de
manhã,
António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher
sabendo isto
disse-lhe:
―«Torna a levá-la ao rei imediatamente;
não vá ele persuadir-se que
lha furtaste.»
O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à
presença de sua
majestade, pediu-lhe que lhe dissesse aonde tinha guardado a pedra
preciosa.
―«Mandei-a meter com todo o cuidado dentro dum cofre de
ferro,
fechado com sete chaves, disse o rei.»
António mostrou-lhe então a jóia
preciosa, e o rei ficou
extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido
semelhante tesouro.
António contou-lhe tudo que tinha havido, a
ingratidão do governador e o
reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o
seu
intendente, e disse-lhe:
[82]―«Homem
perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão,
porque és mais falso e mais pérfido que os
animais ferozes, e pagaste
com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será
feita. Dou a António as
tuas honras e os teus bens, e a ti, hoje mesmo, o castigo de seres
enforcado.»
Admiraram todos a sentença do rei, e António
desempenhou as suas altas
funções com tanta sabedoria e bondade, que depois
da morte do rei foi
escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos
gloriosos.
[83]
O ermitão
Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa,
deliberou
retirar-se a uma gruta solitária para se consagrar
inteiramente ao
trabalho da sua salvação. Jejuando sempre,
orando, ciliciando-se, os
seus pensamentos não se desviavam nunca da ideia de Deus.
Depois de ter
assim vivido durante muitos anos, uma noite lembrou-se de que
já tinha
merecido um lugar glorioso no paraíso, e podia ser contado
entre os
santos mais notáveis.
Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:
―Há no mundo um pobre músico, que anda de porta
em porta, tocando viola
e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas eternas.
O ermitão, atónito, ao ouvir estas palavras,
levantou-se, agarrou no
seu bordão, foi em busca do músico e mal o
encontrou disse-lhe:
―Irmão, diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que
orações e
penitências te tornaste agradável a Deus.
―Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça,
santo padre, não
zombes de mim. Nunca fiz [84]boas
obras, e quanto a orações não as sei,
pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é
andar de casa em casa a
divertir os outros.»
O austero ermitão continuou a insistir:
―Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda,
praticaste algum
acto de virtude.»
―Em verdade não poderia citar nem um
só.»
―Mas então como chegaste a este estado de pobreza? Tens
vivido
loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste
frivolamente
o teu património e o produto do teu
ofício?»
―Não; mas um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo
marido e
filhos tinham sido condenados à escravidão para
pagar uma dívida. Essa
mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa,
protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía
para resgatar a
sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia
encontrar-se com seu
marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro
tanto?»
A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e
exclamou:
―Nos meus setenta anos de solidão nunca pratiquei uma obra
tão
meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus, enquanto
que tu não
passas dum pobre músico.»
[85]
Carlos Magno e o abade de
S. Gall
Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de S. Gall,
preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta
da abadia, fresco,
rosado, bem disposto. Carlos Magno adorava os homens
enérgicos e
activos, e o abade era indolente. Além disso o imperador
tinha mais
dum motivo de queixa contra ele.
―Bons dias, senhor abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter
à
sua esclarecida razão três perguntas,
às quais terá a bondade de me
responder daqui a três meses, contados dia a dia, em
sessão solene do
nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu valor em
dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao
mundo;
em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que v.
rev.ma vier à minha
presença, pensamento que deve ser um erro. Trate
de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás
deixa de ser abade de S.
Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num burro com a cara voltada
para o rabo.»
O abade não sabia a que santo se apegar. Mandou a todas as
escolas, mas
os doutores mais [86]famosos
pela sua ciência, não lhe souberam dar
resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época fatal
aproximava-se; já não faltava senão um
mês, já não faltavam senão
semanas, e afinal só dias. O abade, que noutro tempo era
gordo e
anafado, estava magro como um esqueleto. Perdera o sono e o apetite.
Andava errante nos bosques lamentando a sua desgraça, quando
se
encontrou com o seu pastor.
―Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro!
Está doente?»
―Estou, meu caro Félix, estou muito doente.»
―Oh! meu rico amigo, eu lhe darei alguma erva que o possa
curar.»
―Infelizmente não são ervas que eu preciso, mas
resposta às minhas três
perguntas.»
―É então latim?»
―Não, não é latim, senão os
doutores tinham-me arranjado tudo.»
―Visto que não é latim, queira v. rev.ma
dizer-me o que é: minha mãe
era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.»
Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor
atirou com o
barrete ao ar, e disse-lhe:
―Se é apenas isso, eu me encarrego de responder por si, e v.
rev.ma
pode continuar a engordar; mas para isso é
necessário que eu vista o seu
hábito.»
Quando chegou o dia, o pastor disfarçado com o
hábito do abade de S.
Gall, foi introduzido na sala onde o imperador presidia o conselho
imperial.
―Então, senhor abade, parece que está mais magro,
deu-lhe muito que
pensar a chave do [87]enigma?
Vamos lá a ver a primeira pergunta: Quanto
valho eu em dinheiro?»
―Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por
trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove,
só um
dinheiro menos.»
―Bravo, senhor abade, a resposta é hábil, e na
realidade não posso
deixar de me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda
pergunta, não há de
ser tão fácil dar a resposta. Vamos lá
a ver: quanto tempo levaria eu a
dar a volta ao mundo?»
―Senhor, se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir
constantemente passo a passo o sol no seu giro, bastam-lhe vinte e
quatro horas.»
―Decididamente, v. rev.ma é um grande
finório, e desta vez,
confesso-me vencido; mas a terceira, não dessas à
que se responde com
suposições. Quem lhe há de dizer o que
eu estou pensando, e como me há
de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra
senhor abade.»
―Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou o abade de S. Gall;
está
enganado, porque eu sou o seu pastor.»
―Mas então tu é que deves ser o abade de S. Gall,
e desde já o ficas
sendo.»
―Não sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um
favor,
peço-lhe outra coisa.»
―Não tens mais que falar.»
―Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.»
Carlos Magno não era homem que faltasse à sua
palavra.
[88]
A boneca
Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma história―a
história duma
boneca!
Não há muitos anos, mas ainda não era
a Cordoaria do Porto o ameno
jardim, onde a infância folga por entre maciços de
flores e sob o
sorriso do sol, sem que lhe enegreça o espírito a
vista dos dois
monumentos, que a meu ver simbolisam as duas mais horríveis
calamidades,
que podem aniquilar um homem―o hospital e a cadeia!―ainda
não há
muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da
feira, divertindo-me a meu modo.
Cansado das inúmeras figuras, que tinha visto passar por
aquela
espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar por
findo o espectáculo,
quando novos personagens me chamaram a atenção.
Eram os meus vizinhos ricos.
Aqui é preciso uma rápida
explicação.
Das famílias da minha vizinhança, só
conheço três.
Qual destas três famílias será mais
feliz?...
Pelo que tenho notado, não têm que invejar umas
às outras.
[89]São
todas felizes; cada qual a seu modo.
Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.
Parou o carro, o criado saltou da almofada e veio, de chapéu
na mão e
dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou,
tomou nos braços a filhinha e depô-la no
chão, e oferecendo, em
seguida, a mão à esposa, para a ajudar a apear,
dirigiu-se com ela e
com a menina para a barraca onde eu estava.
Não havia ali segredo a surpreender.
Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que
parecia agradecer àquela formosa criança a
manifestação de qualquer
desejo.
No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que
fazer a
felicidade de dez crianças menos abastadas.
Tinha o necessário para montar completamente a casa duma
boneca...
rica.
Faltava apenas a dona da casa―a boneca.
Todo risos e atenções, o lojista apresentou o que
tinha de melhor.
Depois de muita hesitação e de, já com
os olhos, já com a voz, consultar
a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma
magnífica boneca de
dois palmos de altura, com cabelo em bandeaux e
olhos azuis.
Uma boneca como as outras: cabeça e colo de massa, corpo de
pelica
recheada, braços e pernas de pau.
Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribo de
crianças, que fazem
o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por
chefe um honrado
sapateiro.
[90]Alguns deles, se
andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem
anjos, caídos do céu sobre um monte de lama.
São os meus vizinhos pobres.
A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a
casa
imediata.
É como se costuma dizer, gente que vai muito bem
com a sua vida.
A filha que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e
carnudas,
cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem
à
pressão.
São os meus vizinhos remediados.
A terceira é a dos meus vizinhos ricos.
Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito
nas
listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do
estado―nada falta àquela ditosa gente!
Compõe-se igualmente de marido, mulher e filha.
Que formosa criança!... Terá oito anos.
Franzina e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e
cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos
compridos e
esguios, terminados por unhas duma cor de rosa transparente, que
não
sinta antecipada inveja do feliz namorado―provavelmente ainda a
crescer―que há-de um dia ter o direito de lhas cobrir de
beijos.
Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este mudou todas
aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para
dentro do
carro.
A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática
criança.
[91]Saí
dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa
variadíssimas
considerações, sugeridas pela quase
indiferença, com que aquela menina
recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.
Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras
raparigas da
mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de pano,
horrível
artefacto português, em que os olhos são
representados por dois pontos
de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor de
rosa, a boca por
outro de fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!
Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados
não havia luz.
Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola,
cantando ao som de
três assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos,
por lavar,
provocavam os ralhos da mãe.
Quando, no dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas
da manhã.
Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do
sapateiro; na
casa imediata não se via ninguém―estava a pequena
na mestra; no
palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da
varanda,
divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com
auxílio duma
linha, uma magnífica caleche descoberta,
puxada por cavalos brancos.
Dentro da caleche pavoneava-se a boneca
opulentamente vestida.
―«Aí está a tua caricatura, minha
feiticeira!...»―disse eu de mim
para mim. «Ensaias [92]nas
bonecas o que vês no mundo a que pertences!...
Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»
Retirei-me da janela.
Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.
A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se
vestia três e quatro vezes!
Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao
respeito com que a dona a
tratava!
Chamava-lhe sr.a D. Luísa; dava-lhe
excelência; sustentava finalmente
com a boneca um destes diálogos de senhoras da alta
sociedade, em que
se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.
Um dia,―estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos
ricos―ouvi um grito de susto.
Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de
carro.
Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra
da janela.
O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a
vítima; vendo,
porém, que a ferida havia forçosamente de deixar
cicatriz, e
lembrando-se de que só lhe bastava querer, para que lhe
dessem outra
nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com
despeito à rua, quando mais
perto de mim bradou voz tímida e suplicante:
«Não atire!... Dê-ma.»
Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não
dera fé até
então.
Assim invocada, a menina rica franziu levemente [93]as sobrancelhas e
lançou um olhar de rainha para o sítio donde
vinha a súplica.
Vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou
e,
encolhendo os ombros, respondeu:
―«Já não presta!... Está
esmurrada!...»
―É o mesmo!... Dá-ma?...―bradou a outra, cujos
olhos brilhavam de
cobiça.
―«Dou...»―volveu a rica, encolhendo novamente os
ombros.
E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas
mãos da
vizinha, que tremia, receosa de que aquele tesouro fosse
despedaçar-se nas lajes da rua.
Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a
outra, para mostrar à mãe a que ela ainda
não podia acreditar, que
fosse sua!
Por espaço de meses foi a boneca a principal
ocupação da nova dona.
A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em ela se vestia quatro
vezes em quatro horas!... Já lhe não davam
excelência! Chamavam-lhe
sr.a D. Ana; falavam-lhe de arranjos
domésticos, do desmazelo da
criada, da missa das almas, de coisas finalmente, completamente
estranhas para ela!
E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe
cada vez menos
azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia
se tornava mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!
Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido, [94]que trouxera no corpo,
ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.
Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto,
fitas velhas, rendas
amareladas, chapéus impossíveis, viessem
contrastar com a elegância do
vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja duma adeleira.
Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho, e com ele
as ondulações do moiré,
até que, um belo dia, vi a boneca vestida de
cassa―-no Inverno!―xaile e manta na cabeça.
Muito mal lhe ficava aquilo!... Àquela boneca custava-lhe de
certo o
ver-se tão mal arranjada.
Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e balbuciei:
―É justo!... Cada qual segundo as suas posses.»
Por esse tempo, entrei em relações com o meu
vizinho sapateiro.
O honrado homem soubera, que eu me queixara da bulha, que os filhos
faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião,
para me
pedir desculpa.
Vendo-me conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a
aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de
casa nem entro, sem
grave risco de sofrer as consequências da sua travessa
familiaridade.
Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma
pequenita de onze anos, com
quem simpatizei logo à primeira vista.
Chama-se Maria.
Por um destes acasos da Providência, que parece [95]às vezes
comprazer-se
em criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os
irmãos.
Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do
sapateiro,
fiquei deveras pasmado quando o pai ma apresentou.
E bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança,
porque havia
verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse:
«Esta é a
minha Maria!»
E tinha razão!
Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo
era.
―É quem vale à mãe!...―acrescentou o
velho.»―Ali, onde a vê, faz o
serviço duma mulher!... Há seis meses, quando a
minha santa esteve
doente―bem pensei que não arribasse!―a pequena era quem
cozinhava e
olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem!?... Olhe
que aquela
pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao
pé da mãe! Foi
preciso eu obrigá-la, que ela não a queria
deixar!...»
E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma
lágrima, que,
havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.
Fazia gosto ver aquela pequena com o seu vestidinho de chita escura e a
cabeça coberta por um lenço branco.
Desde que o pai me deu tão boas
informações da rapariga, nunca mais
passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias
à
pequena.
Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca
deitada nos joelhos.
[96]―Eu
conheço aquela boneca!...―disse eu de mim para mim.
E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:
―Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...
Foi ali a menina da vizinha!―respondeu a pequenita, corando de prazer.
Era escusado dizer-mo.
Maria pegara na boneca e voltara-a de face para mim. Não
podia
duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez
mais visível
na fronte.
De tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se
com
ela.
―Quem te viu e quem te vê!...―pensava eu.
Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lha
podiam apanhar, que
tratos que sofria a desgraçada!
Roçada por aquelas mãos, de que um carvoeiro se
envergonharia,
empregada como péla, submetida a torturas, era, ainda assim,
singularíssimo o aspecto da triste!
Dava ares duma duquesa que, por necessidade, houve sido levada a
fraternizar com o povo.
A mísera mudara mais uma vez de nome!...
De sr.a D. Ana passara a ser sr.a
Rosinha e tratavam-na por vossemecê.
Trajava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço
na cabeça.
Era um prazer para mim o escutar as conversas, que Maria sustentava com
a boneca.
Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria,
encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre
boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver [97]falta de
trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que
mais familiares eram à pequena.
Outra vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na,
mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe,
regateando, a soldada, e
acabavam por a despedir.
Já o leitor vê que, apesar da bondade Maria,
deixara de ser feliz.
Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio
vizinho!
Desmaiada de cores, quase perdido o cabelo, semi-apagados os olhos,
desfeito o carmim dos lábios, a boneca não
prometia longa duração.
Foi este pelo menos, o prognóstico que fiz a
última vez que a vi,
tentando em vão agradar à última dona
que o seu destino lhe dera.
Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!
Um dia chovia a cântaros!―o enxurro, mal cabendo nas valetas
da rua,
espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na
passagem mil
imundícies.
Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e
olhava
melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto ouvi
um grito, que
partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um
objecto,
arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e
foi cair no
leito do enxurro...
Olhei... Era a boneca!...
A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo
até esbarrar numa
pedra; mas o redemoinho envolveu-a, [98]e,
depois de a fazer girar três ou
quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado
entre a pedra e
o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir
sumir-se nas
profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!
Será pieguice, será o que o leitor quiser; mas,
confesso-lhe, que me
impressionou o fim da pobre boneca.
Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à
vidraça do
sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:
―Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?
―Não fui eu...―balbuciou a pequena, chorando.―Foi ali o
Joaquim!...
―E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...
―Ora!...―respondeu o garoto com enfado.―Ora!... Estava velha... e
feia!...
Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu
caminho.
Pobre boneca!
[99]
Inconveniente da riqueza
Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia, foi
surpreendido pela noite à entrada duma aldeia. Procurou dum
lado para
outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas estavam
já
todas fechadas, não se via nem um raio de luz
através das janelas, tudo
estava adormecido. Apenas no fim dum beco se ouvia o barulho do mangual
com que se bate o trigo, e nesse sítio havia uma pequena
luz. Nosso
Senhor dirigiu-se para lá, chegou ao pé do muro
duma quinta, e bateu à
porta. Foi um camponês que lha veio abrir.
―Fazia favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite?
Não se havia de arrepender.»
E acrescentou:
―Visto que já todos estão deitados, para que
é que você está ainda a
trabalhar?»
―Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite
que ia ser perseguido
por um credor desapiedado, se lhe não pagasse
amanhã o que lhe devo,
portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para
o vender no mercado, e pagar a minha dívida. Depois disto
não nos fica
nada, [100]e
não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que
Deus
quiser!»
Ao dizer isto o camponês limpava o suor da testa, e passava a
mão pelos
olhos arrasados de lágrimas. O Senhor teve dó
dele, e disse-lhe:
―«Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade,
disse-te que não te
havias de arrepender de ma ter dado. Vou provar-to.»
Pegou na candeia, que estava suspensa numa das traves do celeiro, e
aproximou-a do trigo.
―Que vai fazer? disseram assustados os trabalhadores, vai deitar fogo a
tudo!»
Mas no mesmo instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se,
de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa.
À vista dum tal
milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.
―Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua
pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo,
serás
recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que
te
enriquece.»
Dito isto desapareceu.
E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e
fez um monte tão alto
como a igreja.
O camponês pagou as suas dividas, comprou terras, e construiu
uma bela
casa. Era rico, e tornou-se orgulhoso e altivo com os pobres. Ele e
seus filhos adquiriram costumes perdulários, tanto e tanto
fizeram, que
se arruinaram, e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos,
ninguém os ajudou na sua miséria. Uma noite o
velho camponês, que bebera
enormemente, entrou [101]no
celeiro, e, recordando-se do milagre que o
enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer.
Agarrou na
candeia, aproximou-a dum feixe de palha, comunicou-se o fogo, ardeu a
casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na
miséria mais
absoluta.
[102]
Querer é poder
―Quem procura sempre encontra, diz um velho provérbio; quero
ver por
experiência, disse um dia um rapaz, se esta máxima
é verdadeira.
Pôs-se a caminho, e foi apresentar-se ao governador duma
grande cidade.
―Senhor, disse-lhe ele, há muitos anos que vivo tranquilo e
solitariamente, e a monotonia fatigou-me. Meu amo disse-me muitas
vezes―Quem procura sempre encontra, e quem
porfia mata caça. Tomei
uma grande resolução. Quero casar com a filha do
rei.
O governador mandou-o embora, imaginando que era um doido.
O rapaz voltou no dia seguinte, no outro e no outro, e assim durante
uma
semana, sempre com a mesma vontade inabalável,
até que o rei ouviu
falar o rapaz da sua louca pretensão. Surpreendido com uma
ideia tão
extravagante, e, querendo divertir-se, disse-lhe o rei:
―Que um homem distinto pela hierarquia, pela coragem, pela
ciência,
pensasse em casar com uma princesa, nada mais natural. Mas tu, quais
são
os teus títulos? Para seres o marido [103]de minha filha
é necessário que te
distingas por alguma qualidade especial ou por um acto de valor
extraordinário. Ouve. Perdi há muito tempo no rio
um diamante dum valor
incalculável. Aquele que o encontrar obterá a
mão de minha filha.
O rapaz, contente com esta promessa, foi estabelecer-se nas margens do
rio; logo de manhã começava a tirar
água com um balde pequeno, e
deitava-a na areia, e, depois de ter assim trabalhado durante horas e
horas, punha-se a rezar.
Os peixes inquietos ao verem tão grande tenacidade, e
receando que
chegasse a esgotar o rio, reuniram-se em conselho.
―Que quer este homem? perguntou o rei dos peixes.»
―Encontrar um diamante que caiu ao rio.»
―Então, respondeu o velho rei, sou de opinião que
lho entreguem, porque
vejo qual é a têmpera da vontade deste rapaz; mais
fácil seria esgotar
as últimas gotas do rio, do que desistir da sua
empresa.»
Os peixes deitaram o diamante no balde do rapaz, que casou com a filha
do rei.
[104]
Qual será rei?
Morreu uma vez um rei, deixando quatro filhos, e sem ter designado o
sucessor. Reuniu-se a corte, e decidiu-se que a coroa devia pertencer,
não ao mais velho dos quatro filhos, mas sim ao mais digno.
Resolveram além disso que o cadáver do rei fosse
posto de pé contra um
muro, e que o príncipe que acertasse melhor com uma flecha
naquele
alvo, seria o escolhido para sucessor.
Começou o mais velho. Esticou a corda do arco, apontou
durante muito
tempo, e a flecha foi atravessar a mão esquerda do defunto.
O príncipe
soltou grito de alegria, cuidando que seus irmãos atirariam
pior, e que
por conseguinte seria ele quem viria a reinar.
O segundo acertou em cheio na cara do rei, soltando um grito ainda mais
alegre do que o outro príncipe.
O terceiro varou o coração de seu pai, e os seus
gritos de triunfo
quase que chegavam ao céu, porque lhe parecia
impossível acertar melhor.
Quando chegou a vez do quarto filho, tiveram de lhe meter nas
mãos as
flechas e o arco: mas, [105]desde
que olhou para o alvo, arrojou as armas
longe de si, e desatou a chorar:
―«Oh! meu pai! meu querido pai! exclamou ele, como poderei eu
jamais
consolar-me de ver o teu corpo crivado de flechas pela mão
de teus
próprios filhos!»
Os grandes da corte ouvindo isto proclamaram-no rei, como sendo o mais
digno.
[106]
Os três
véus de Maria
O primeiro véu de Maria era dum linho mais alvo do que a
neve.
Bordara-o com as suas mãos, e ornara-o com uma grinalda de
flores de
seda tão bem imitadas, que as abelhas, iludidas, vinham
pousar-lhe em
cima.
Este véu branco só o trouxe uma vez, no dia da
sua primeira comunhão.
O segundo véu de Maria era de lã negra.
Principiou-o no mesmo dia em que
sua mãe lhe morrera, deixando-a sozinha, sem amparo, na casa
triste e
abandonada. Era bordado de perpétuas roxas, como as dos
sepulcros de
mármore, e os olhos de Maria tinham-no orvalhado com todas
as suas
lágrimas.
O véu negro só o trouxe uma vez,―no dia em que se
tornou esposa de
Jesus no convento da Avé-Maria.
O terceiro véu era feito dum retalho do azul celeste,
bordado
de estrelas, e perfumado com aromas suavíssimos.
Foi o seu anjo da guarda, que lho deu no mesmo dia em que ela entrou
no paraíso.
[107]
Os pequenos no bosque
Um dia três pequenos iam juntos para a escola, e disseram uns
aos
outros, que não havia nada no mundo mais aborrecido que
estudar: «Vamos
para o bosque que encontraremos
lá toda a espécie de lindos bichinhos, que
não fazem outra coisa senão brincar, e
nós brincaremos com eles.»
Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da activa
formiga e da
abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar,
disse-lhes:
―Brincar? Preciso construir com estas ervas uma ponte nova, porque a
outra já não está
sólida.»
―Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões para
o Inverno.»
―Eu, disse dali a pomba, tenho muitas coisas que levar para o meu
ninho.»
―Eu, disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês,
mas ainda
hoje não lavei o meu focinho. Antes de mais nada, tenho que
fazer a
minha toilette.»
E tu, lindo regato, disseram os pequenos desertores, [108]que passas o tempo
a saltar e a tagarelar, também não queres brincar
connosco?»
―Estes pequenos são tolos, disse o regato. Como?
Vocês então imaginam
que eu não tenho que fazer? De noite ou de dia,
não descanso nem um
momento. Tenho que dar de beber aos homens e aos animais, às
colinas,
aos vales, aos campos e aos jardins. Tenho que apagar os
incêndios,
tenho que fazer mover as forjas, os moinhos, as serralharias. Nem hoje
acabara, se lhes quisesse contar o que tenho que fazer. Não
posso perder
um instante. Adeus, adeus. Estou com muita pressa.»
Os pequenos, desconcertados, puseram-se a olhar para o ar, e viram um
pintassilgo, em cima dum ramo.
―Olha! tu, que não tens nada que fazer, queres brincar
connosco?»
―Nada que fazer? vocês estão a mangar comigo,
disse o pintassilgo. Todo
o dia tenho que apanhar moscas para comer. Tenho além disso
que tomar
parte no concerto dos passarinhos, tenho que alegrar o
operário com o
meu chilrear, e tenho que adormecer as crianças com uma
outra cantiga,
que à noite e de madrugada celebre a bondade do Criador.
Ide-vos embora,
preguiçosos, ide cumprir o vosso dever, e não
tornem a vir incomodar os
habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a
desempenhar.»
Os pequenos aproveitaram a lição, e compreenderam
que o prazer só é
legítimo, quando é a recompensa do trabalho.
[109]
O chapelinho encarnado
Era uma vez uma rapariguinha muito bonita e cheia de bondade, a quem
sua
mãe e sua avó adoravam extremosamente. A boa da
avozinha, que passava o
tempo a imaginar o que poderia agradar à neta, deu-lhe um
dia um chapéu
de veludo vermelho. A pequenita andava tão contente com o
seu chapéu
novo, que já não queria pôr outro, e
começaram a chamar-lhe a menina do
chapelinho encarnado.
A mãe e a avó moravam em duas casas separadas por
uma floresta de meia
légua de comprido. Uma manhã a mãe
disse à pequenita:
―Tua avó está doente, e não
pôde vir ver-nos. Eu fiz estes doces, vai
levar-lhos tu com esta garrafa de vinho. Toma cuidado não
quebres a
garrafa, não andes a correr, vai devagarinho e volta
logo.»
―Sim, mamã, respondeu ela, hei-de fazer tudo como
deseja.»
Atou o seu avental, meteu num cestinho a garrafa e os doces, e
pôs-se
a caminho. No meio da floresta um lobo aproximou-se dela. A pequenita,
que nunca vira lobos, olhou para ele sem medo algum.
[110]―Bons dias,
chapelinho encarnado.»
―Bons dias, meu senhor, respondeu delicadamente a pequena.»
―Onde vais tão cedo?»
―A casa da minha avó que está doente.»
―E levas-lhe alguma coisa?»
―Levo, sim senhor; levo-lhe uns bolos e uma garrafa de vinho para lhe
dar forças.»
Diz-me onde mora a tua, avó, que também a quero
ir ver.»
―É perto, aqui no fim da floresta. Há ao
pé uns carvalhos muito
grandes, e no jardim há muitas nozes.»
―Ah! tu é que és uma bela noz, disse consigo o
lobo. Como eu gostava
de te comer.» Depois continuou em voz alta:―Olha, que bonitas
árvores e
que lindos passarinhos. Como é bom passear nas florestas, e
então que
quantidade de plantas medicinais que se encontram!»
―O senhor, é com certeza um médico, respondeu a
inocente pequenita,
visto que conhece as ervas medicinais. Talvez me pudesse indicar alguma
que fizesse bem a minha avó.»
―Com certeza, minha filha, olha, aqui está uma, e esta
também, e
aquela.» Mas todas as plantas que o lobo indicava, eram
plantas
venenosas. A pobre criança, queria-as apanhar para as levar
a sua avó.
―Adeus, meu lindo chapelinho encarnado, estimei muito conhecer-te. Com
grande pena minha, tenho de te deixar para ir ver um doente.»
E pôs-se a correr em direcção da casa
da avó, enquanto que a pequerrucha
se entretinha em apanhar as plantas que ele tinha indicado.
[111]Quando o lobo
chegou à porta da velha, achou-a fechada e bateu, mas a
avó não se podia levantar da cama, e perguntou:
Quem está aí?»
―É o chapelinho encarnado, respondeu o lobo imitando a voz
da
pequerrucha. A mamã manda-te bolos e uma garrafa de
vinho.»
―Procura debaixo da porta disse a avó, que
encontrarás a chave.»
Encontrou-a, abriu a porta, engoliu duma bocada a pobre velha inteira,
e depois, vestindo o fato que ela costumava usar, deitou-se na cama.
Pouco depois entrou a pequenita, assustada e admirada de encontrar a
porta aberta, porque sabia o cuidado com que a avó a
costumava ter
fechada.
O lobo tinha posto uma touca na cabeça, que lhe escondia uma
parte do
focinho, mas o que lhe ficava descoberto era horrível.
―Ai! avozinha, disse a criança, porque tens tu as orelhas
tão grandes?»
―É para te ouvir melhor, minha filha.»
―E porque estás com uns olhos tão
grandes?»
―É para te ver melhor.»
―E para que estás com os braços tão
grandes?»
―É para te poder abraçar melhor.»
―E Jesus! para que tens hoje uma boca tão grande e uns
dentes tão
agudos?»
―É para te comer melhor.» A estas palavras o lobo
arremessou-se à pobre
pequena, e engoliu-a. Como estava repleto, adormeceu, e
começou a
ressonar muito alto. Um caçador que passava por acaso, perto
da casa, e
que ouviu aquele barulho, disse consigo: A pobre velha está
com um
pesadelo, [112]está
pior talvez, vou ver se precisa dalguma coisa.» Entra, e
vê o lobo estendido na cama.
―Olá, meu menino, diz ele: há muito tempo que te
procuro.»
Armou a sua espingarda, mas parando logo: Não, disse ele,
não vejo a
dona da casa. Talvez o lobo a engolisse viva. E em lugar de matar o
animal com uma bala, pegou na sua faca de mato, e abriu-lhe
cuidadosamente a barriga. Apareceu logo o chapelinho encarnado e
saltou para o chão, gritando:
―Ai! que sítio medonho onde eu estive fechada!
A avó saiu também contentíssima por
ver outra vez a luz do dia.
O lobo continuava a dormir profundamente, e o caçador
meteu-lhe então
duas grandes pedras na barriga, coseu tudo, e escondeu-se com a
avó e a
neta para verem o que se ia passar.
Decorrido um instante o lobo acordou, e como tinha sede, levantou-se
para ir beber ao lago. Ao andar ouvia as pedras baterem uma na outra, e
não podia compreender o que aquilo era; com o peso, caiu no
lago, e
afogou-se.
O caçador tirou-lhe a pele, comeu os bolos e bebeu o vinho
com a velha
e a sua neta. A velha sentia-se remoçar, e o chapelinho
encarnado
prometeu não tornar a passar na floresta, quando sua
mãe lho
proibisse.
[113]
Os cinco sonhos
Andando um dia Carlos Magno à caça com uma
comitiva numerosa, perseguiu
um veado, que dava tais saltos, e corria por tal forma, que, apesar da
ligeireza do seu cavalo, o rei perdeu-lhe completamente a pista. Foi
só
então que viu que estava só, tendo a sua corte
ficado muito para traz;
sentindo-se fatigado, entrou ao cair da noite numa choupana
solitária
no meio da floresta. Em roda da lareira estavam deitados quatro
ladrões.
Os salteadores levantaram-se logo, como despertados pelo barulho da
entrada do viajante; cada um deles tinha tido um sonho, que lhe
quiseram logo contar.
O primeiro que tomou a palavra exprimiu-se desta maneira:
―No meu sonho, tirava eu o capacete de ouro à pessoa que
acaba de entrar
aqui, e punha-o na minha cabeça.»
―Eu, disse o outro, sonhei que vestia a sua
couraça.»
―E eu que estava pondo o seu manto.»
―E eu, disse o quarto ladrão, para lhe fazer favor, passava
em roda do
meu pescoço aquela [114]pesada
cadeia de ouro, da qual está pendurada a sua
trompa de caça.»
―Vejo bem, disse o imperador, que têm
tenção de me roubar tudo, e
mesmo a vida. Reconheço que estou em poder de
vocês, e que toda e
qualquer resistência seria inútil. Não
lhes peço senão uma coisa, é que
me deixem tocar pela última vez na minha trompa de
caça.»
Os salteadores responderam que consentiam, visto que o
último pedido
dum moribundo deve ser respeitado.
Carlos Magno levou à boca a sua magnífica trompa
de marfim, e tirou
dela sons tão fortes e sonoros, que em menos dalguns minutos
todos os
seus companheiros de caça e a sua comitiva estavam ao
pé dele.
―Agora, disse o imperador, dirigindo-se aos salteadores, agora
também
eu devo contar o sonho que tive. Sonhei que vocês todos iam
ser
enforcados diante deste casebre.»
E o sonho realizou-se imediatamente.
[115]
A igreja do rei
Era uma vez um rei, que quis levantar uma igreja magnífica
em honra da
Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse
contribuir para
a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o
edifício se
concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei gravar numa pedra do
mármore uma inscrição em letras de
ouro, que dizia que só ele, e mais
ninguém, tinha levado a cabo aquela obra monumental. Mas na
noite
seguinte o nome do rei foi apagado da inscrição,
e substituído por o
duma pobre mulherzinha do povo. O rei no dia seguinte tornou a mandar
pôr o seu nome na inscrição, e de novo
foi substituído pelo da pobre
mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de
cólera, ordenou
então que lhe trouxessem a mulher à sua
presença:
―Proibi a todos os meus vassalos, disse-lhe ele, que
contribuíssem
fosse com o que fosse para a edificação desta
igreja; vejo que não
cumpriste as minhas ordens.»
―«Senhor, respondeu a velhinha toda trémula, eu
respeitei as vossas
ordens, apesar da mágoa [116]que
sentia por não poder oferecer o meu
pequenino óbolo em honra da Virgem; mas julguei
não desobedecer a vossa
majestade, deixando por vezes de jantar para comprar um pouco de feno,
que eu levava às escondidas aos bois que conduziam as pedras
destinadas
à construção da igreja.»
―«O teu nome é mais digno do que o meu de figurar
em letras de ouro na
inscrição do monumento, disse-lhe o
rei.»
Mas na noite seguinte uma mão invisível
restabeleceu na lápide da igreja
o nome do rei, que desde então lá se conserva
ainda.
[117]
O valente soldado de
chumbo
Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos,
por todos
terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude marcial,
de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e
vermelhos!
A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a tampa da
caixa em que eles estavam, foi este grito: «Olha soldados de
chumbo!»
que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria. Tinham-lhos dado
de presente no dia dos anos, e o seu divertimento era
formá-los sobre a
mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se pareciam
maravilhosamente uns com os outros, excepto um, que tinha uma perna de
menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar, e
já não havia
chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não
estavam mais
firmes nas duas pernas do que ele na sua única, e
é este o que
precisamente nos interessa.
Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil
outros
brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo
castelo de
papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe [118]o interior dos
salões.
À volta era circundado duma floresta em miniatura, que se
reflectia
poeticamente num pedaço de espelho que fingia um lago, onde
nadavam
pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era encantador, mas não
tanto como
uma menina que estava à porta, e que era também
de papel, vestida com um
lindo vestido de cassa, apertado com um cinto de fivela azul. A menina
tinha os braços arqueados, porque era dançarina,
e tinha uma perninha
levantada a tal altura, que o soldado de chumbo não a podia
ver, e
imaginou que, como ele, não tinha senão uma perna.
―Ali está a mulher que me convém, pensou ele, mas
é uma grande
fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de
vinte e
quatro camaradas, e não haveria cá lugar para
ela. No entanto
preciso conhecê-la.»
Deitou-se atrás duma caixa de tabaco, e dali podia ver
à sua vontade a
elegante dançarina, que estava sempre num pé
só, sem perder o
equilíbrio.
À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e
as pessoas
da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto,
começaram
a divertir-se, fizeram guerras, e a final deram um baile. Os soldados
de
chumbo mexiam-se, e remexiam-se na sua caixa, porque queriam
lá ir; mas
como haviam eles tirar a tampa? O quebra-nozes começou a dar
cabriolas
e saltos mortais, o lápis traçou mil arabescos
fantásticos numa lousa,
enfim o barulho tornou-se tal que o canário acordou, e
pôs-se a cantar.
Os únicos que [119]estavam
quietos eram o soldado de chumbo e a
dançarinazinha. Ela no bico do pé, e ele numa
perna só, a
espreitá-la.
Deu meia noite, e zás, a tampa da caixa de rapé
levanta-se, e em lugar
de rapé, saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de
surpresa.
―Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro
sítio.»
Mas o soldado fez que não ouvia.
―Espera até amanhã, e verás o que te
acontece, continuou o feiticeiro.»
No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado de
chumbo à janela, mas de repente ou por influência
do feiticeiro ou por
causa do vento caiu à rua de cabeça para baixo.
Que tombo! Ficou com a
perna no ar, o peso do corpo todo sobre a barretina, e com a baioneta
enterrada entre duas lajes.
A criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo,
mas estiveram quase a
esmagá-lo, sem darem por ele. Se o soldado tivesse gritado:
«Cautela!»
te-lo-íam achado, mas ele julgou que seria desonrar a farda.
A chuva
começou a cair em torrentes, e tornou-se num verdadeiro
dilúvio. Depois
do aguaceiro passaram dois garotos.
―Olá! disse um deles, um soldado de chumbo por aqui! Vamos
fazê-lo
navegar.»
Construíram um barco dum bocado de jornal velho, meteram o
soldado de
chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois
garotos corriam ao lado, e davam grito de prazer. Que ondas! Santo
Deus!
Que força de corrente! Mas também tinha chovido
tanto! O barco jogava
[120]duma maneira
horrorosa, mas o soldado de chumbo conservava-se
impassível, com os olhos fixos e a espingarda ao ombro.
De repente o barco foi levado para um cano, onde era tão
grande a
escuridão como na caixa dos soldados.
―Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante do feiticeiro que me
meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela linda menina
estivesse no barco, não importava, ainda que a
escuridão fosse duas
vezes maior.»
Dali a pouco apresentou-se um enorme rato de água; era um
habitante do
cano.
―Venha o teu passaporte.»
Mas o soldado de chumbo não disse nada, e agarrou com mais
força na
espingarda. O barco continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o,
rangendo os dentes, e gritando às palhas, e aos
cavacos:―Façam-no
parar, façam-no parar! Não pagou a passagem,
não mostrou o passaporte.»
Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do
dia, e
sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o homem mais
valente.
Havia na extremidade do cano uma queda de água
tão perigosa para ele,
como é para nós uma catarata. Aproximava-se dela
cada vez mais, sem
poder parar, com uma rapidez vertiginosa. O barco lançou-se
sobre a
queda de água, e o pobre soldado firmava-se o mais
possível, e ninguém se
atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com o susto.
O barco, depois de ter andado à roda durante muito tempo,
encheu-se
de água, e estava a ponto [121]de
naufragar. A água já chegava ao
pescoço do
soldado, e o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a
água passou por cima da cabeça do nosso
herói. Nesse momento supremo,
pensou na gentil dançarinazinha, e pareceu-lhe ouvir uma voz
que dizia:
―Soldado: o perigo é enorme, a morte espera-te.»
O papel rasgou-se, e o soldado passou através dele. Nesse
momento foi
devorado por um grande peixe.
Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do
cano. E além disso, que
talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido, o
soldado
estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.
O peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo,
até que enfim
parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a
luz do dia,
e alguém exclamou:
―Olha um soldado de chumbo!»
O peixe tinha sido pescado, exposto na praça, vendido, e
levado para a
cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma enorme faca. Pegou no
soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda a
gente quis admirar esse homem extraordinário, que tinha
viajado na
barriga dum peixe. No entretanto o soldado não se sentia
orgulhoso.
Colocaram-no em cima da mesa, e ali―tanto é verdade que
acontecem
coisas extraordinárias neste mundo―achou-se na mesma sala,
de cuja
janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos
que estavam
em cima da mesa, o lindo palácio, e a adorável
dançarina sempre [122]de
perna
no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa
vontade teria
derramado lágrimas de chumbo, mas não era
conveniente. Olhou para ela,
ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra um ao outro.
De repente um dos pequenos pegou nele, e sem motivo algum deitou-o no
fogão; eram obras do feiticeiro da caixa do rapé.
O soldado de chumbo lá estava perfilado, alumiado por um
clarão
sinistro, e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe
tinham
desaparecido, sem que se pudesse dizer, se era por causa das suas
viagens, ou por causa dos seus desgostos. Continuava a olhar para a
dançarina, que também olhava para ele. Sentia-se
derreter, mas, sempre
intrépido, conservava a espingarda ao ombro. De repente
abriu-se uma
porta, o vento arremessou a dançarina ao fogão
para junto do soldado, que
desapareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já
não era mais
que uma pequena massa informe.
No dia seguinte, quando a criada veio tirar a cinza, encontrou um
objecto que tinha o feitio dum pequeno coração de
chumbo, e tudo o que
restava da dançarina era a fivela do cinto azul que o lume
tinha
enegrecido.
[123]
João Pateta
João era filho duma pobre viúva, bom rapaz, mas
um pouco simplório. A
gente da aldeia chamava-lhe por brincadeira João Pateta. Um
dia sua mãe
mandou-o à feira comprar uma foice. À volta,
começou a andar com a foice
à roda, de maneira que a foice caiu em cima duma ovelha, e
matou-a.
―Pateta, disse-lhe sua mãe, o que deverias ter feito era
pôr a foice em
um dos carros de palha ou de feno dalgum dos vizinhos.»
―Perdão, mãe, respondeu humildemente
João, para a outra vez serei mais
esperto.»
Na semana seguinte mandaram-no comprar agulhas, recomendando-lhe que
as não perdesse.
―Fique descansada. E voltou todo orgulhoso.»
―Então, João, onde estão as
agulhas?»
―Ah! estão em lugar seguro. Quando saí da loja em
que as comprei, ia a
passar o carro do vizinho carregado de palha; meti lá as
agulhas, não
podem estar em sítio melhor.»
―De certo, estão em lugar de tal modo seguro, que
não há meio de as
tornar a ver. Devias tê-las espetado no
chapéu.»
[124]―Perdão,
respondeu João, para a outra vez, hei-de ser mais
esperto.»
Na outra semana, por um dia de calor, João foi dali uma
légua comprar
uma pouca de manteiga. Lembrando-se do último conselho de
sua mãe, pôs a
manteiga dentro do chapéu e o chapéu na
cabeça. Imagine-se o estado em
que voltou para casa, com a cara a escorrer manteiga derretida.
A mãe já tinha medo de o mandar fazer qualquer
recado. No entanto um dia
resolveu-se a mandá-lo à feira vender duas
galinhas.
―Ouve bem, não vendas pelo primeiro preço. Espera
que te ofereçam
outro.»
―Está entendido, respondeu João.»
Foi para a feira. Um freguês chegou-se a ele.
―Queres seis tostões por essas galinhas?»
―Ora adeus! minha mãe recomendou-me, que não
aceitasse o primeiro
preço, mas que esperasse o segundo.»
―E tens muita razão. Dou-te um cruzado.»
―Está bem. Parece-me que tinha feito melhor em aceitar o
primeiro,
mas, como cumpro as ordens de minha mãe, ela não
tem que me ralhar.»
Depois disto, João foi condenado a ficar em casa. Sua
mãe sabia que
mangavam com ele, e se riam dela. Uma manhã quis fazer uma
experiência, e disse-lhe:
―Vai vender este carneiro à feira. Mas não te
deixes enganar. Não o
entregues senão a quem te der o preço mais
elevado.»
―Está bem, agora entendo, e sei o que hei de
fazer.»
[125]―Quanto queres por
esse carneiro?
―Minha mãe disse-me que o não vendesse
senão pelo preço mais elevado.
―Quatro mil réis?»
―É o preço mais elevado?»
―Pouco mais ou menos.»
―É minha a lã e o carneiro, disse um rapaz que
trepara a uma escada.
―Quanto?»
―Dez tostões:»
―É menos, respondeu timidamente o João.»
―Sim, mas vês até onde chega esta escada. Em toda
a feira não há um
preço mais elevado.»
―Tem razão. É seu o carneiro.»
Desde esse dia o João Pateta não tornou a ser
encarregado de vender ou
comprar coisa alguma.
[126]
Branca de Neve
Era uma vez uma rainha, que se lastimava por não ter filhos.
Um dia
de Inverno, enquanto bordava num bastidor de ébano olhando
de vez em
quando pela janela, para ver cair os flocos de neve no chão,
distraída, picou-se num dedo e saiu uma gota de sangue.
―Como eu desejaria ter uma filha, que tivesse uns beiços
tão vermelhos
como este sangue, uma pele branca como esta neve, e uns cabelos negros
como este ébano.»
Algum tempo depois os seus desejos realizaram-se, e deu à
luz uma filha,
que tinha uma linda boca vermelha, cabelos negros e o corpo
tão branco,
que lhe chamavam Branca de Neve. Porém esta feliz
mãe não gozou muito
tempo da sua felicidade. Morreu, e o rei tornou a casar com uma mulher
duma grande beleza, e dum orgulho não menos
extraordinário. Era tão
formosa que se considerava a mulher mais perfeita do universo. Algumas
vezes fechava-se no seu quarto, e colocando-se diante dum espelho
mágico dizia-lhe:
―Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda
que há no
mundo?»
―És tu, respondia o espelho.»
[127]No entanto Branca
de Neve crescia, e de dia para dia se tornava mais
formosa. Tinha apenas sete anos, e já ninguém a
podia ver sem ficar
maravilhado. Um dia a orgulhosa rainha, sentando-se diante do seu
espelho, disse-lhe:
―Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda
que há no
mundo?»
―Não és tu, não és tu.
Branca de Neve é mais linda.»
A estas palavras a orgulhosa rainha sentiu no
coração uma dor aguda,
como uma punhalada, e ao mesmo tempo sentiu um ódio mortal
pela
inocente Branca. Não podia sossegar nem de dia, nem de
noite. Para
satisfazer o seu ódio, chamou um criado, e disse-lhe:
―Quero que Branca desapareça. Conduze-a à
floresta, mata-a, e, para me
provar que as minhas ordens foram executadas pontualmente, traz-me o
coração.»
O criado levou Branca para o fundo da floresta, pegou numa faca, e
dispunha-se a executar a ordem que recebera. A pobre criança
chorava e
lamentava-se, e pedia-lhe que a não matasse, porque ela
não tinha feito
mal a ninguém, e queria viver. O criado, comovido com
aquelas
lágrimas, não teve coragem, e abandonou-a na
floresta, pensando que se
as feras a devorassem a culpa não era dele, mas sim da
rainha. Assim
fez, e para mostrar o coração de Branca
à rainha, matou um cabrito, e
tirou-lhe o coração. A rainha ao ver aqueles
despojos sangrentos ficou
contentíssima, e disse consigo: Enfim, morreu a minha rival,
e nenhuma
mulher no mundo é tão bela como eu.
[128]A pobre Branca,
abandonada na floresta, não tinha morrido, mas estava
cheia de medo. Pela primeira vez na sua vida punha os pés
nas pedras, e
andava pelo meio do mato que lhe rasgava o vestido, e pela primeira vez
também via animais ferozes. Mas as feras não lhe
faziam mal algum, o
deixavam-na andar. No fim do dia tinha atravessado sete montanhas.
À noite chegou ao pé duma casinha muito
pequenina. Estava morta de fome
e de sede. Entrou na casa, onde tudo estava muito arranjado e muito
limpo. Havia uma mesa pequena, e sobre a mesa, coberta com uma toalha
de
brancura irrepreensível, sete pratos pequenos, sete garrafas
pequenas,
e ao longo da parede sete camas muito pequeninas. Branca comeu um pouco
do que estava nos pratos, bebeu uma gota de vinho de cada copo,
deitou-se na cama, rezou, e adormeceu profundamente.
Momentos depois os donos da casa entraram. Eram sete mineiros
pequeninos, cada um com uma lanterna dependurada na cintura. Viram logo
que tinham gente em casa. Um deles disse:
―Quem comeu o meu pão?»
E os outros sucessivamente:
―Quem pegou no meu garfo?»
―Quem comeu o meu caldo?»
―Quem bebeu o meu vinho?»
E enfim um deles:
―Quem está aí deitado na minha cama?»
Reuniram-se todos à roda do pequeno leito em que dormia
Branca. À luz
das lanternas viram o doce rosto da criança, que dormia
tranquilamente,
[129]e afastaram-se sem
fazer bulha, para a não acordar. Branca no dia
seguinte de manhã ficou um pouco assustada, quando viu perto
de si
aqueles sete anões das montanhas. Mas eles disseram-lhe com
brandura,
que não tivesse medo, e perguntaram-lhe donde vinha, e como
se chamava.
Branca contou a sua triste história, e os anões
disseram-lhe:
―Queres tu ficar connosco, para tomar conta da nossa casa?»
―Da melhor vontade, respondeu Branca, completamente
sossegada.»
Começou logo o seu serviço, e continuou-o
regularmente todos os dias.
Limpava os móveis, e fazia o jantar. Os anões iam
trabalhar para as
minas de ouro e de diamantes, e quando voltavam achavam tudo em ordem.
Durante esse tempo a rainha andava satisfeita, quando pensava que
já não
tinha que recear uma rival. Sentou-se outra vez diante do seu espelho,
e disse-lhe:
―Meu fiel espelho, não é verdade que eu sou agora
a mulher mais linda
que há no mundo?»
E o espelho respondeu:
―Sim, nos teus palácios e nos teus castelos, mas Branca
está nas sete
montanhas, e Branca é mais linda do que tu.»
Ouvindo esta resposta a orgulhosa rainha, sentiu de novo um golpe
cruel,
e determinou tornar a fazer desaparecer a inocente Branca. Mas de que
modo? Uma manhã partiu disfarçada em vendedeira
ambulante, com um cesto
cheio de objectos de fantasia. Foi direita às sete
montanhas, e bateu à
[130]porta da casinha,
gritando: «Quem quer comprar bonitas
jóias?»
Os anões tinham recomendado a Branca que desconfiasse das
caras
estranhas, receando os emissários da rainha, e ela tinha
prometido ser
prudente. Mas, quando viu as lindas coisas que a vendedeira tinha no
cesto, esqueceu-se das suas promessas.
―Veja este rico colar, minha menina, eu mesmo lho vou pôr ao
pescoço.»
Branca consentiu, e a rainha estrangulou-a, e foi-se embora. Quando os
anões voltaram, viram a infeliz Branca estendida no
chão e completamente
inanimada. Arrancaram-lhe o colar, e deitaram-lhe nos lábios
algumas
gotas dum licor amarelo. Branca começou a respirar, voltou a
si pouco
a pouco, e contou aos seus bons amigos o que lhe tinha acontecido.
―Podes estar certa, disseram-lhe eles, que essa vendedeira
não era
outra pessoa, senão a tua inimiga, a rainha. Toma cautela,
não deixes
entrar aqui ninguém, quando não estivermos em
casa.»
Ao entrar no seu palácio toda contente, colocou-se a rainha
diante do
espelho, e disse-lhe:
―Meu fiel espelho: Qual é agora a mulher mais linda que
há no mundo?
Responde.
E o espelho respondeu:
―És tu nos teus grandes palácios e nos teus
castelos, mas Branca está
nas sete montanhas, e Branca é mais linda do que
tu.»
A rainha enfureceu-se, e resolveu mais uma vez tentar aniquilar a
infeliz Branca. Tornou-se a disfarçar [131]em vendedeira. Chegou
às sete
montanhas, e bateu à porta da cabana.
―Quem quer comprar lindas jóias? Branca veio à
janela, e respondeu:
―Vá-se embora, aqui não entra
ninguém.»
―Tanto pior para si, respondeu a malvada, olhe este pente de ouro.
Já
viu outro tão bonito?»
Branca não pôde resistir ao desejo de possuir
aquela jóia. Abriu a
porta.
―Oh! minha linda menina, deixe-me pôr-lho na
cabeça.»
Ao dizer isto enterrou-lhe na cabeça o pente, que estava
envenenado, e
Branca caiu morta.
À noite quando regressaram os anões, acharam-na
pálida e fria.
Tiraram-lhe o pente envenenado, reanimaram-na com a sua bebida, e
tornaram a recomendar-lhe que fosse prudente.
No entanto a cruel rainha voltava contentíssima para o seu
palácio.
Apenas chegou, foi direita ao espelho, e fez-lhe a mesma pergunta, a
que
o espelho respondeu como antecedentemente.
―Ah! é preciso que ela morra, ainda que para isso eu tenha
de me
sacrificar.
Vestiu-se de camponesa com um cesto de maçãs.
Entre elas havia uma que
estava envenenada dum lado. Foi, e bateu à porta da
cabana.»
―Quem quer comprar fruta, quem quer comprar?»
―Retire-se, disse Branca vendo-a pela janela, não deixo
entrar
ninguém, nem compro coisa alguma.»
―Está bem, não faltará quem compre
estas ricas maçãs. Mas por ser tão
bonita, quero dar-lhe uma.»
[132]―Obrigada,
não posso aceitar.»
―Imagina que está envenenada. Olhe, eu vou comer um
pedaço. Ah! que boa
que é! Nunca provei nada assim. Ao pronunciar estas
palavras, a traidora
mordia no lado da maçã, que não estava
envenenado. Branca deixou-se
tentar, levou à boca o outro pedaço, e caiu
fulminada.
―Aí tens, para castigo da tua formosura.»
Quando chegou ao palácio a rainha foi direita ao espelho, e
perguntou-lhe:
―Meu fiel espelho, quem é agora a mulher mais
linda?»
E o espelho respondeu:
―És tu, és tu.»
―Até que enfim!»
Os anões estavam inconsoláveis. Debalde tinham
tentado reanimá-la com o
licor de ouro, e com outras bebidas ainda mais fortes. Branca
continuava
fria e inanimada. Choraram por ela durante três dias, e os
passarinhos
da floresta choraram também. No entanto as boas avezinhas
não podiam
acreditar que ela estivesse morta, e vendo o seu rosto tão
tranquilo,
as suas faces tão frescas, parecia que estava a dormir.
Não quiseram
enterrá-la. Meteram-na num caixão de cristal, e
escreveram em cima.
«Aqui jaz a filha dum rei;» puseram o
caixão numa das sete montanhas,
e um deles devia estar de guarda constantemente. Branca conservou-se
assim durante muitos anos, sem que se notasse no seu rosto a mais
pequena alteração.
Um dia um formoso rapaz, filho dum rei, tendo-se perdido ao andar
à
caça, viu o caixão, e pediu aos anões
que lho cedessem, fosse por preço
que fosse.
[133]―Somos muito
ricos, e por nada deste mundo venderemos este caixão, que
é o nosso tesouro.»
―Então dêem-mo, já não posso
viver sem contemplar este rosto de
mulher. Guardá-lo-ei na melhor sala do meu
palácio. Peço-lhes que me
façam isto.»
Os anões, comovidos, consentiram. Quatro homens pegaram no
caixão para
o levarem. Um deles tropeçou numa raiz, e o
caixão sofreu um
balanço, que fez cair o bocado da maçã
envenenada, que Branca não tinha
engolido, e que lhe ficara na boca. Abriu logo os olhos, e ressuscitou.
O
jovem príncipe levou-a para o seu castelo, e casou com ela.
O
casamento fez-se com grande pompa. O príncipe convidou todos
os reis e
rainhas dos diferentes países, e entre elas a rainha inimiga
de
Branca. Apenas acabou de vestir um rico vestido, que devia atrair todos
os olhares, pôs-se diante do espelho, e disse a rainha:
―Meu fiel espelho, qual a mulher mais linda que há do
mundo?»
E o espelho respondeu:
―Branca é mais formosa que tu.
A estas palavras a rainha estremeceu, e teve tal medo que os seus
crimes
fossem descobertos, que morreu de repente.
Branca viveu muitos anos, adorada de todos, e no seu palácio
de
princesa não se esqueceu dos anões que tinham
sido os seus benfeitores.
[134]
A rapariguinha e os
fósforos
Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o
último de
Dezembro, véspera de Ano Bom. No meio deste frio e desta
escuridão
passou na rua uma desgraçada pequerrucha, com a
cabeça descoberta e os
pés descalços. É verdade que trazia
sapatos ao sair de casa, mas
tinham-lhe servido pouco tempo: eram uns grandes sapatos, que sua
mãe já
tinha usado, tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao
atravessar a rua
a correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente;
quanto ao outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a
intenção de fazer
dele um berço para o seu primeiro filho.
A pequenita caminhava com os pezinhos nus, arroxeados pelo frio; tinha
no seu velho avental uma grande quantidade de fósforos, e
levava na
mão um maço deles. O dia correra-lhe mal;
não tinha havido
compradores, e por isso não apurara cinco réis.
Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caiam-lhe nos
longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do
pescoço; [135]mas
pensava ela porventura nos seus cabelos anelados?
As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se na rua o cheiro dos
manjares; era a véspera de dia de Ano Bom: eis no que ela
pensava.
Deixou-se cair a um canto, entre dois muros. O frio enregelava-a cada
vez mais, mas não se atrevia a voltar para casa: o pai
bater-lhe-ia,
porque não tinha vendido os seus fósforos.
Além disso em sua casa
fazia tanto frio como na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o
vento
atravessava, apesar de o terem calafetado com palha e farrapos. As suas
mãozinhas já quase que as não sentia.
Ai! como um fosforozinho aceso
lhe faria bem! Se tirasse do maço apenas um, um
único, e ascendendo-o
aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: ritche!
como estoirou! como
ardeu! Era uma chama tépida e clara, como uma pequena
lamparina. Que
luz esquisita! Parecia-lhe estar sentada defronte de um enorme braseiro
de ferro, cujo lume magnífico aquecia tão
suavemente, que era um regalo.
A pequerrucha ia já a estender os pezitos para os aquecer
também, quando
a chama se apagou repentinamente: achou-se sentada, tendo na
mão uma
pontita de fósforo consumido.
Acendeu segundo fósforo, que ardeu, que brilhou, e o muro
onde bateu
a sua chama tornou-se transparente como vidro. Olhando
através desse
muro, a pequerrucha viu uma sala com uma mesa coberta de uma toalha
alvíssima, deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual
uma galinha
assada com recheio de ameixas e de batatas [136]fumegava
exalando um perfume
delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a galinha saltou do
prato, e caiu no chão ao pé da pequerrucha, com o
garfo e a faca
espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo, e viu apenas
diante de
si a parede fria e tenebrosa.
Acendeu terceiro fósforo, e achou-se imediatamente sentada
debaixo
de uma magnífica árvore do Natal; era ainda mais
rica e maior do que a
que tinha visto no ano passado através dos vidros de um
armazém
sumptuoso.
Nos ramos verdes brilhavam centenares de balões acesos, e as
estampas
coloridas, como as que há às portas das lojas,
pareciam sorrir-lhe.
Quando ia agarrá-las com as duas mãos, apagou-se
o fósforo; todos os
balões da árvore do Natal começaram a
subir, a subir, e viu então que se
tinha enganado, porque eram estrelas. Caiu uma delas, deixando no
céu
um longo rasto de fogo.
―É alguém que está a morrer, disse a
pequerrucha; porque a sua avó, que
lhe queria tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas
vezes: «Quando
cai uma estrela, sobe para Deus uma alma.»
Acendeu ainda outro fósforo: deu uma grande luz, no meio da
qual lhe
apareceu sua avó, de pé, com um ar radioso e
suavíssimo.
―Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu sei
que te vais
embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás
como a panela de
ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.
Acendeu o rosto do maço, porque não queria [137]que sua avó lhe
fugisse, e
os fósforos espalharam um clarão mais vivo que a
luz do dia. Nunca sua
avó tinha sido tão formosa. Pôs ao colo
a pequerruchinha, e ambas
alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto,
tão alto, que
já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias:
haviam chegado ao Paraíso.
Mas quando rompeu a fria madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os
dois muros, ao canto, com as faces incendiadas, o sorriso nos
lábios...
morta, morta de frio na última noite do ano. O dia de Ano
Bom veio
alumiar o pequenino cadáver, sentado ali com os seus
fósforos, a que
faltava um maço, que tinha ardido quase inteiramente.―Quis
aquecer-se,
disse um homem que passou.» E ninguém soube nunca
as lindas coisas que
ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a sua
velha avó no dia do Ano Novo.
[138]
O primeiro pecado de
Margarida
Chamava-se Margarida, e estavam à espera dela no
céu, porque Deus
tinha dito:―É uma boa alma, e, como lá em baixo
no mundo lhe pode
acontecer alguma desgraça, vou trazê-la um destes
dias para o paraíso.»
Margarida era uma virgem cândida, matinal como a aurora,
fresca como
ela; todos os dias ao acordar rezava as orações,
que sua mãe lhe tinha
ensinado, e vestia-se depois na sua pequenina alcova. E, como
não tinha
jóias preciosas nem ricos adornos, dispensava o espelho.
Depois disto, para viver honradamente, punha-se a trabalhar.
E, ao mesmo tempo cigarra e abelha, trabalhava cantando uma bela
canção
de amor e de glória, que já embalara muitos
berços, e que podia
sensibilizar uma alma inocente, sem lhe perturbar a limpidez.
Numa tarde de Verão, estava ela sentada à porta
de casa fiando linho,
à hora em que as estrelas começam a aparecer, uma
a uma no firmamento.
Estava Margarida cantando a sua canção, quando [139]passou por ali uma das
suas vizinhas, que ia a uma romaria, muito asseada, com um vestido
novo.
Parou diante de Margarida, para que lhe admirasse os seus brincos e o
colar de ouro que levava ao pescoço; apertou-lhe a
mão para que visse
bem o anel que brilhava no seu dedo, e foi-se embora a rir, toda
contente. E Margarida foi-a seguindo com um olhar de inveja, o que
inquietou no paraíso o seu anjo da guarda.
O fio de linho já não passava tão
rapidamente entre os dedos de
Margarida, a roda cessara o seu barulho monótono, e o fuso
caíra-lhe das
mãos.
Ao cair o fuso despertou do êxtase, abriu os olhos, e viu
diante de si
um cavaleiro magnificamente vestido, tendo na mão um gorro
de veludo
preto, com uma pluma vermelha, da cor do fogo. O cavaleiro saudou-a
respeitosamente, e, com uma voz harmoniosa e galanteadora,
perguntou-lhe:
―Qual é o caminho da cidade?»
Margarida estendeu a mão para lho indicar, e o forasteiro
inclinando-se
tirou do dedo um anel de ouro com um diamante, que brilhava como uma
estrela, e meteu-o no dedo de Margarida, que o achou mais belo do que
o anel da sua companheira. O rosto do cavaleiro alumiou-se
então com
um sorriso estranho e diabólico.
Nisto passou por ali um mendigo coberto de farrapos, parou diante de
Margarida, e pediu-lhe uma esmola.
Margarida tirou do dedo o anel, e ofereceu-o ao pobre
desgraçado.
O cavaleiro então, soltando um grito de cólera,
ia lançar-se sobre
Margarida, mas o mendigo―[140]que
era o seu anjo da guarda
disfarçado―cobriu-a com as asas. E o cavaleiro, isto
é Satanás, que
tinha vindo para a tentar, recuou aniquilado diante do
espírito celeste.
[141]
Um nome inscrito no
céu
Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta duma humilde
cabana a
pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não
vendo, nem
ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no
casebre; viu
então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:
―«Ai! não te posso dar nada, porque nada
tenho.»
E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater
à mesma
porta.
―Pelo amor de Deus! gritou a velhinha, já te disse que
não tenho nada
que te dar.»
―Foi por isso que eu voltei―disse em voz baixa o mendigo.
E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do bolso, pondo-os em
cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas moedas de dez
réis, que
lhe tinham dado depois de ter estado com a velha a primeira vez.
―Aqui te fica isto, santinha―disse-lhe ele afectuosamente, indo-se
embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de lhe agradecer.»
Não sabemos qual era o nome do mendigo; mas os anjos
escrevê-lo-ão no
Paraíso, e mais tarde nós o viremos a saber.
[142]
O linho
O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais delicadas e
transparentes do que asas de moscas. O sol espalhava os seus raios
sobre
ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer, como o
dum filho quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.
―Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito crescido,
e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz.
Não há
ninguém que seja mais feliz do que eu sou. Tenho
saúde e um belo
futuro. A luz acaricia-me, e a chuva encanta-me e refresca-me. Sim, sou
feliz, feliz a mais não poder ser!»
―Como és ingénuo! disseram as silvas do valado;
tu não conheces o
mundo, de que nós outras temos uma larga
experiência.»
E rangendo lastimosamente, cantaram:
―Cric, crac! cric, crac! crac!
―Acabou-se! acabou-se! acabou-se!
―Não tão cedo como vocês imaginam,
respondeu o linho; está uma bela
manhã, o sol resplandece, [143]e
a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e
florir. Sou muitíssimo feliz.»
Mas um belo dia vieram uns homens que agarraram no linho pela
cabeleira, arrancaram-no com raízes e tudo, e deram-lhe
tratos de
polé. Primeiro mergulharam-no em água, como se o
quisessem afogá-lo, e
depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!
―Não se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si;
é necessário
sofrer, o sofrimento é a mãe da
experiência.»
Mas as coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no,
cardaram-no, e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois,
puseram-no numa roca, e então perdeu a cabeça
inteiramente.
―Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio
daquelas
torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades
perdidas.»
E ainda estava dizendo―perdidas, e já o estavam a meter no
tear e a
transformá-lo numa peça de pano.
―Isto é extraordinário, nunca o imaginei; que boa
sorte a minha, e que
grandes tolas aquelas silvas quando cantavam:
Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! acabou-se! acabou-se!
Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é
verdade, mas por isso
também agora sou mais feliz do que nunca. Sinto-me
tão forte, tão alto,
tão macio! Ah! isto é bem melhor do que ser
planta, mesmo florida,
ninguém trata da gente, e [144]não
bebemos outra água a não ser a da chuva.
Agora é o contrário: que cuidados! As raparigas
estendem-me todas as
manhãs, e à noite tomo o meu banho com um
regador. A criada do sr. cura
fez um discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a
melhor peça da paróquia. Não posso ser
mais feliz.»
Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras.
Cortaram-no e
picaram-no com uma agulha. Não era lá muito
agradável, mas em
compensação fizeram dele uma dúzia de
camisas magníficas.
―Agora decididamente começo a valer alguma coisa. O meu
destino é
abençoado, porque sou útil neste mundo.
É preciso isso para se viver em
paz, e ser-se feliz. Somos hoje doze pedaços, é
verdade, mas formamos um
só grupo, uma dúzia. Que incomparável
felicidade!
O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.
―Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda, mas
não
se fazem impossíveis.»
E as camisas foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era
finalmente a sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem
adivinharem o que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em
papel
branco magnífico.
―Oh que agradável surpresa! exclamou o papel, agora sou
muito mais fino
do que dantes, e vão cobrir-me de letras. O que
não escreverão em cima
de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!»
E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas
diante de
inúmeros ouvintes, e os tornaram mais sábios e
melhores.
[145]―Ora aqui
está uma coisa muito superior a tudo que eu tinha imaginado,
quando vivia na terra, coberto de flores. Como poderia eu imaginar que
ainda havia de servir para alegrar e instruir os homens! Não
sei
explicar o que me está acontecendo, mas é
verdade. Deus sabe
perfeitamente que nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha
sorte; foi Ele que gradualmente me elevou, até chegar
à maior glória.
Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: «Acabou-se,
acabou-se»
tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais
risonho. Vou
viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam ler e
instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis; agora
as minhas flores são os mais elevados pensamentos. Sinto-me
feliz,
imensamente feliz!»
Mas o papel não foi viajar; entregaram-no ao
tipógrafo, e tudo que lá
estava escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros,
que recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O
nosso bocado de
papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda
que desse a volta à roda
do mundo. A meio caminho já estaria gasto.
―É justo, disse o papel, não tinha pensado nisso.
Fico em casa, e vou
ser considerado como um velho avô! fui eu que recebi as
letras, as
palavras caíram directamente da pena sobre mim, fico no meu
lugar, e os
livros vão por esse mundo fora. A sua missão
é realmente bela, e eu
estou contente, e julgo-me feliz.
O papel foi empacotado, e lançado para uma estante.
―Depois do trabalho é agradável o descanso, [146]pensou ele. É
neste
isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em
diante é que
eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmo
é a verdadeira
perfeição. Que me irá ainda acontecer?
Progredir, está claro.»
Passados tempos, o papel foi atirado ao fogão para o
queimarem, porque o
que o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar
açúcar. E todas as
crianças da casa se puseram à roda; queriam
vê-lo arder, e ver também,
depois da labareda, as milhares de faíscas vermelhas, que
parecem fugir,
e se apagam instantaneamente uma após outra. O
maço inteiro de papel
foi atirado ao lume. Oh! como ele ardia! Tornara-se numa grande
chama, que se erguia tão alto, tão alto como o
linho nunca erguera as
suas flores azuis; a peça de pano nunca tinha tido um brilho
semelhante.
Todas as letras, durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as
palavras, todas as ideias desapareceram em línguas de fogo.
―«Vou subir até ao sol;» dizia uma voz
no meio da labareda, que
pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela
chaminé, e no
meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os
olhos do
homem. Eram tantos quantos tinham sido as flores que o linho tinha
dado.
Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se extinguiu,
quando não restava do papel senão a cinza negra,
ainda eles dançavam
sobre essa cinza, e formavam, tocando-a, pequeninas centelhas
encarnadas.
As crianças cantavam à roda da cinza inanimada:
[147]
Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! acabou-se! acabou-se!
Mas cada um dos pequeninos seres dizia: «Não,
não se acabou; agora é que
é o melhor da festa. Sei-o, e julgo-me feliz.»
As crianças não puderam ouvir, nem compreender
estas palavras; mas
também não era necessário, porque as
crianças não devem saber tudo.
FIM.
ÍNDICE
Lista de erros corrigidos
A propriedade deste livro pertence no Brasil ao sr. Luís de
Andrade,
residente no Rio de Janeiro.