The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3 Author: Camilo Castelo Branco Release Date: March 30, 2008 [EBook #24957] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA. NO. 3 *** Produced by Pedro Saborano[1]
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS
A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
POR
Camillo Castello Branco
PUBLICAÇÃO MENSAL
N.o 3--MARÇO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE |
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ERNESTO CHARDRON
96, Largo dos Clerigos, 98 PORTO |
EUGENIO CHARDRON 4, Largo de S. Francisco, 4 BRAGA |
1874
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
68--Rua da Cancella Velha--62
1874
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
SUMMARIO
Feitiços da guitarra -- Em que veias gira o sangue de Camões? -- Lisboa -- Voltas do Mundo -- Nova solução do problema historico -- Desgraçado Balzac! (Á «Actualidade») -- Os 2 Joaquins -- Flôres para a sepultura de Ferreira Rangel -- Mysterio da Castanha -- Bem vindo! -- Os Salões, pelo exc.mo snr. visconde de Ouguella -- Subsidios para a historia da serenissima casa de Bragança
Cuidará talvez muita gente, aliás instruida na historia da musica e seus effeitos, que a influencia da guitarra nos paços reaes é cousa moderna e peculiar da côrte portugueza. Não, senhores. O exemplo deu-o a Hespanha no fim do seculo passado, e a historia do mais afortunado guitarrista d'este planeta extravagante em que moramos, vou contal-a eu.
Na volta do anno 1786, D. Gabriel Alvares de Faria, arcediago da sé de Badajoz, tinha dous sobrinhos, Luiz e Manoel. O arcediago, que blazonava descender dos Farias, alcaides-móres de Palmella, em Portugal, timbrava de muito fidalgo; mas declarava aos sobrinhos que fossem ganhar [6] sua vida, porque a pitança da conezia não dava para tres.
Os dous rapazes, que tangiam guitarra a primor, e cantavam seguidilhas de sua invenção, fizeram-se no rumo de Madrid, á cata de aventuras. O estalajadeiro, que lhes deu a credito o primeiro mez de hospedagem, folgava tanto de ouvir as tonadilhas de D. Manoel, que não quiz outra paga durante um anno.
Conseguiram os dous rapazes entrar na guarda de corpus. Luiz, mediante a guitarra, insinuou-se no affecto de uma açafata da princeza Luiza de Parma, esposa do principe que depois foi Carlos IV; e, quando a dama ensandecia de amor ao seu menestrel, lhe disse elle que, se o seu cantar e tanger a transportavam, que seria se ouvisse seu irmão D. Manoel!
Contou isto a dama á princeza. Sua alteza era folgazã. Quiz ouvir o guitarrista. Ouviu-o, admirou-o, amou-o, e--o que muito é--convenceu o marido a gostar das trovas de a Tyrana acompanhadas d'um harpejo triste, que não ha ahi cousa que mais diga.
O principe não era escorreito.
Menos incauto era Carlos III, que mandou sahir de Madrid o guitarrista, logo que deu tento dos [7] effeitos cupidineos dos bordões e prima, na pessoa da nora.
Mas assim que o rei morreu, D. Manoel voltou a Madrid, foi restituido ao palacio, á alcova real, e nomeado successivamente sargento-mór da guarda, ajudante-general, grã-cruz de Carlos III, intendente dos correios, cavalleiro do tosão, duque de Alcudia, primeiro ministro, principe da paz, grande de Hespanha de primeira classe, com dotação territorial de 50:000 piastras de rendimento, e general supremo dos exercitos (em 1800) com o tractamento de alteza serenissima (1807).
Em 1797 casára com D. Maria Thereza de Bourbon, filha natural do infante D. Luiz, irmão d'el-rei Carlos III. A rainha conviera n'este consorcio, já porque a noiva era abominavel de feia, já porque tinha zelos infernaes de Josefa Tudo, formosissima mulher com quem o seu valido casára clandestinamente, intitulando-a depois condessa de Castello-Fiel.
D. Manoel de Godoy, que assim tocára o galarim das grandezas humanas, desceu tão rapido quanto subira.
Conjuraram contra elle influencias internas e externas.
Os hespanhoes, obrigados a guerrear a Inglaterra, odiavam o amigo da França. Este odio [8] exasperou-se depois do desastre de Trafalgar, onde acabou para sempre o poder naval de Hespanha. Á frente dos adversarios do principe da paz sahiu o principe das Asturias, chamado depois Fernando VII.
Seguiram-se evoluções politicas, em que o heroe a resvalar ao ponto d'onde subira, se voltou contra a França, de accordo com Portugal. Em 1808 preparava-se para fugir com a familia real, quando rebentou no Aranjuez a revolução em que sua alteza serenissima se escondeu em uma talha, e não foi estrangulado pelo povo a pedido do rei e da rainha.
Ainda depois d'esta crise, o duque de Alcudia voltou a dominar o animo dos reis de Hespanha, e a rehaver a confiança de Napoleão; mas a final o baque foi irreparavel. Passou a França, e depois a Roma, onde o papa o intitulou principe de Passerano.
Em Hespanha, confiscaram-lhe os bens. A esposa, de quem elle se divorciára amigavelmente, vivia pobre em Paris, intilulando-se duqueza de Chinchon, e lá morreu em 1828. O viuvo declarou então que já era casado com Josefa Tudo. A unica filha de D. Manoel Godoy casou em 1820 com o principe romano Raspoli.
Até 1844, o principe da paz viveu em Paris [9] tão convisinho da indigencia que Deus sabe se elle teve tentações de tanger a guitarra da sua juventude á porta dos amadores do genero. Depois de 36 annos de exilio, obteve licença de entrar em Hespanha, e readquiriu parte dos bens, que lhe permittiram dez annos de vida relativamente abastada.
Morreu, por 1851, em Paris, com 84 annos de idade.
Os biographos d'este homem extraordinario ignoram todos que elle era, em Portugal, conde de Evora-Monte por carta de 2 de outubro de 1797.
Tambem desconhecem que o alvará de mercê o faz primo de D. Maria I, e descendente de D. Pedro I e de D. Ignez de Castro, por ser quarto neto de Francisco de Faria, alcaide-mór de Palmella: descendencia a mais imaginosa que ainda vimos amanhar-se em cabeças de nobiliaristas.
Ahi vai o alvará que é documento não despeciendo:
«D. Maria, etc. Faço saber aos que esta minha carta virem que attendendo á mui antiga, e esclarecida nobreza, qualidades, e distinctos merecimentos de D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios Sanches Sarçosa, principe da paz, duque de [10] Alcudia, grande de Hespanha de primeira classe, meu primo, e aos grandes serviços, que a estes reinos fizeram seus maiores antes e depois da fundação da monarchia com repetidas, e assignaladas acções, que os fizeram benemeritos da augusta consideração, e real munificencia dos senhores reis meus predecessores: tendo entendido ser o dito D. Manoel quarto neto de Francisco de Faria, alcaide-mór, e commendador de Palmella, por ser o filho segundo de Diogo Rodrigues de Faria, que passou a Hespanha d'um modo inculpavel, e de quem D. Manoel é terceiro neto: para dilatar com a maior distincção a memoria d'uma tão distincta familia, a qual pela mesma linha de Francisco de Faria é descendente do snr. rei D. Pedro I, e de D. Ignez de Castro, de quem descende a maior parte dos soberanos da Europa; tendo muito segura confiança nos sentimentos verdadeiros, e honrados de D. Manoel, hereditarios na sua familia, que tem lealmente exercitado em beneficio de meus reinos; conformando-me com os augustos, e cordiaes desejos de suas magestades catholicas, esperando, que assim os continue: hei por bem, com aprazimento dos mesmos reis catholicos, pelos ditos respeitos, e por honrar em D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios Sanches Sarçosa, a familia de Faria, de que descende, [11] fazer-lhe a mercê do titulo de conde de Evora-Monte, com o senhorio para elle e seus descendentes, que houver na sua casa dispensando na lei mental, e quero e mando, que elle D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios Sanches Sarçosa se chame conde de Evora-Monte, e com o dito titulo goze de todas as honras, graças, liberdades, preeminencias, prerogativas, authoridades, e franquezas, que hão, e tem, e de que usam, e sempre usarão os condes d'estes reinos, assim como por direito, uso, e antigo costume lhe pertencem, das quaes em tudo, e por tudo quero, e mando que elle use, e possa usar por direito, uso, e costume sem minguamento, ou duvida alguma, que a isso lhe seja posta, porque assim é minha vontade, e com o referido titulo de conde de Evora-Monte haverá o assentamento que lhe pertencer, de que se lhe passará alvará na fórma costumada, e por firmeza de tudo lhe mandei dar esta carta por mim assignada, e sellada com o sello pendente de minhas armas, e passada pela chancellaria: e hei por bem que d'esta mercê se não paguem direitos alguns velhos, e novos, não obstante os regimentos, e quaesquer disposições contrarias. Dada no palacio de Queluz em 2 dias do mez de outubro do anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1797.--O principe [12] com guarda.==José de Seabra da Silva.==Joaquim Guilherme da Costa Posser, a fez.»
Respeito a Farias, houve um, em tempo d'el-rei D. Fernando. O leitor conhece da historia e do romance o celebrado alcaide do castello de Faria, chamado Nuno Gonçalves, que os castelhanos mataram, quando elle, na barbacã da fortaleza, ameaçou de maldição o filho, se a entregasse para salvar seu pai. O snr. Herculano refere este caso com primoroso enthusiasmo.
O filho chamava-se Gonçalo Annes, que se fez clerigo por desgosto de vêr alli trespassado o pai debaixo de seus olhos; a paixão, porém, não lhe impedia reproduzir-se em tres meninos, de quem foi mãi Aldonsa Vasquez.
Do mais velho, que se chamou Nuno Gonçalves de Faria, conhece-se a descendencia. Esse Diogo que no alvará se diz ter passado a Castella, nem era filho de Francisco de Faria, nem passou a Castella: era filho do valido de D. João II, Antão de Faria, e casou com D. Maria de Goes, filha de Simão de Goes Machado.
No lapso de quatro seculos, a varonia do alcaide de Faria--a que eu considero mais respeitavel, mais poetica, mais desculpavel aos fanaticos d'estes archaismos--é a que se tiver conservado [13] na posse das penedias contiguas do esboroado castello, cuja alcaidaria foi do heroico Nuno Gonçalves. O possuidor, ha trinta annos, d'essas ruinas, era João de Faria Machado Pinto Roby. Vendeu as ruinas a um brazileiro.
No mesmo anno em que morreu em Paris sua alteza serenissima o principe da paz, seu parente, morria elle em Lisboa. A providencia divina fez-lhe a mercê de o resgatar assim de um grande supplicio: elle sahia de noite, e pedia esmola aos que passavam. Tinha sido redactor do Nacional de Lisboa, e official de cavallaria muito valente.
Deixou um filho chamado Isidoro de Faria Machado que se suicidou ha dous annos em Lisboa.
Uma de suas filhas é hoje viuva do visconde da Carreira, Luiz. As outras não sei que destino tiveram.
Toda esta noite se me foi de insomnia, a vêr sempre, na penumbra da lamparina, um homem que em Lisboa, ha 24 annos, me dizia com a face coberta de lagrimas:
--Procurei tres amigos que me foram hospedes em meus lautos jantares, quando eu aqui dissipava o meu ouro e a minha intelligencia no serviço da politica. Apenas um se lembra de me conhecer em 1838; mas este é pobre; os outros [14] não se recordam... Sabe qual é a minha esperança?
--A queda dos Cabraes?
--Não: uma congestão cerebral.
Bella e bem realisada esperança!
O representante de Nuno Gonçalves de Faria foi levado morto á sua familia no largo dos Cardeas de Jesus, por uma noite fria e chuvosa, quando as carruagens, que se recruzavam para bailes e theatros, o aspergiam da chuva dos tejadilhos e da lama das rodas.
Não é de mais saber-se isto, quando é moda esmiuçar tudo que entende com o maior poeta do seu seculo.
O livro mais extravagante que, a tal respeito, viu a luz, é a Historia de Camões pelo snr. doutor Theophilo Braga.
As incurias, as criancices, os desvarios que esfervilham n'essas 441 paginas não aparam a pontoada da critica. O livro faz tristeza... porque [15] faz rir; e, por muito frouxo que seja o espirito de patriotismo no censor dos escriptores seus conterraneos, dóe ter de dizer: «o professor de litteratura fez córar a face dos discipulos.»
Os meus reparos n'este livro tocam sómente com o que ha n'elle relativo á familia de Luiz de Camões; mas, ahi mesmo, é deploravel a falta de siso do biographo.
A pag. 233 suppõe o snr. Theophilo que entre uns papeis que se perderam de Luiz de Camões houvesse cartas escriptas aos seus amigos mais valiosos intercedendo por seu pai que estava preso.
A pag. 243, no summario do capitulo VI, diz: A noticia do perdão de seu pai Simão Vaz de Camões. Temos ainda Camões com pai.
A pag. 259: Por estas mesmas novas chegadas de Lisboa nas Náos partidas no principio do anno de 1557 soube Camões... da sentença que condemnava Simão Vaz de Camões, seu pai, para o degredo perpetuo do Brazil com pregão e cadeado.
O leitor chega ao cabo do livro, persuadido que Camões tinha um pai, que por estouvamentos de rapaz devasso, ahi na volta dos 60 annos, mereceu ser condemnado a degredo com pregão e cadeado; mas, por acaso, volta a pagina das erratas, e vê que o biographo lhe pede que leia primo onde estiver pai. Parece uma anecdota isto!
[16]Que razões motivaram esta correcção? Que raio de luz dardejou o bom senso na ultima pagina do livro? Pois o doutor, durante a formação do estirado livro, não teve um intervallo lucido? E, se o teve no fim, porque não queimou a obra desde a primeira pagina, embora se perdesse a Carta de Ayres Barbosa a André de Rezende?
Eis aqui o modo como o snr. Theophilo descobriu a final que Simão Vaz de Camões era primo e não era pai do poeta.
Quando o livro ia sahir do prelo, a humilde pessoa, que escreve estas linhas, publicava, no Diccionario de educação de Campagne, um breve artigo intitulado Camões, em que se lêem estes periodos:
«Os louvores ao prodigioso genio de Luiz de Camões são tantos, e tão amiudados no discurso de tres seculos que já hoje em dia o repetil-os, pelos mesmos conceitos e fórmas encomiasticas, nos parece banal encarecimento. Mais util e plausivel nos avulta o esforço de alguns biographos empenhados em esclarecer os lanços menos claros da biographia do poeta. N'esta ardua lide tem mostrado ardente zelo o snr. visconde de Juromenha, o mais particularisador noticiarista da vida de Luiz de Camões. Todavia, assentando boa [17] parte de suas innovações em conjecturas, resulta que a louvavel vontade de esclarecer se demasie em hypotheses pouco menos de inverosimeis. Está em o numero d'estas a affirmativa de residir em Coimbra por 1556, o pai de Luiz de Camões, Simão Vaz. Este mesmo é na hypothese do biographo, um tal que o corregedor de Coimbra enviava preso a Lisboa, em 1563, por ter entrado em mosteiro de freiras, e vem a ser o mesmo que em 1576, juntamente com os seus criados, espancava o almotacé de Coimbra. Bastaria a despintar da phantasia do snr. visconde de Juromenha semelhante conjectura, a pobreza do filho, que recebeu 2$400 reis para se alistar na armada, em lugar d'outro, em quanto seu pai, com mais de cincoenta de idade, andava por Coimbra escalando conventos, e já com mais de setenta espancava as justiças, acaudilhando criados,--circumstancia indicativa de vida abastada, e orgulho de fidalgo com as posses que dão azas ao orgulho.
«De todo em todo aniquila a supposição de que o mexediço Simão Vaz de Camões haja sido pai do poeta, e marido da desvalida Anna de Macedo, uma nota do snr. doutor Ayres de Campos, sobposta ao traslado da provisão passada em 16 de maio de 1576, a respeito das injurias e offensas praticadas por Simão Vaz de Camões no almotacé. [18] Eis a nota: «E para tambem não ficarmos culpados em passar por alto alguns outros documentos que com estes tem estreitas relações, aqui os apontamos desde já em quanto as suas integras não forem publicadas no supplemento. Assim elles vão prestar auxilio valioso, e não grande embaraço a todos os criticos illustres que, talvez fascinados por meras semelhanças de nomes e appellidos, não teem hesitado em attribuir ao turbulento cidadão conimbricense Simão Vaz de Camões, muito vivo e são em 1576, a honrosa paternidade legitima do author dos Lusiadas.» Cita mais o insigne antiquario a vereação da camara de Coimbra de 31 de julho de 1563 da qual se deprehende que Simão Vaz havia casado em 1562, e casára novamente. Ora, quer o novamente signifique segundas nupcias, quer primeiras, como alguem aventa, sem dar a razão do alvitre, é certo que esse não podia ser o pai de Luiz de Camões, que falleceu antes de sua mãi. (Veja Indices e Summarios dos Livros e Documentos mais antigos e importantes do Archivo da Camara Municipal de Coimbra. Coimbra, 1867, pag. 7).
«Temos presente a genealogia dos Camões, manuscripto de Jorge de Cabedo, fallecido em 1602 ou 1604, e pelo tanto contemporaneo de Luiz [19] de Camões. (Veja Diccion. bibliog. de I. F. da Silva, tom. IV, pag. 161).
«Cabedo falla do bisavô do poeta João Vaz de Camões, que foi corregedor em Coimbra, e jaz em Santa Cruz.
«Segue Antão Vaz de Camões (filho d'aquelle e avô do poeta) que casou no Algarve com Guimar Vaz da Gama. Menciona Simão Vaz de Camões (filho de Antão Vaz e pai do poeta) que foi por capitão d'uma náo á India, e deu á costa á vista de Goa, salvou-se em uma taboa, e lá morreu, deixando viuva Anna de Macedo, dos Macedos de Santarem.
«Faz tambem menção de outro Simão Vaz de Camões, residente em Coimbra, parente proximo do poeta, dizendo ter sido aquelle casado com Francisca Rebello[1] filha de Alvaro Rebello Cardoso, a qual, viuvando, casára com Domingos Roque Pereira[2].»
O snr. Theophilo leu isto sem duvida alguma, [20] e cedeu aos singelos argumentos do artigo do Diccionario.
Que faria o leitor, sendo (Deus o livre!) author do livro de Theophilo?
A não entregar a obra toda ao fogo purificador dos seus creditos litterarios, rasgava as paginas em que chamava pai a Simão Vaz, substituindo-as por outras em que lhe chamasse primo.
Diga-se verdade: o snr. Theophilo rasgou duas paginas do livro, a 59 e 60; mas devia inutilisar as seguintes em que subsistem os erros derivados da confusão dos dous homonymos Simão Vaz de Camões.
Escrevi no Diccionario, reportando-me impensadamente a um genealogico dos Camões: «Faz tambem menção de outro Simão Vaz de Camões, parente proximo do poeta, dizendo ter sido aquelle casado com Francisca Rebello, filha de Alvaro Rebello Cardoso, a qual, viuvando, casára com Domingos Roque Pereira.»
Escreve o sr. Theophilo na regenerada pag. 59:
«Simão Vaz de Camões, que em 1562 casou em Coimbra com Francisca Rebello, filha de Alvaro Cardoso[3].»
[21]Convido o snr. Theophilo Braga a declarar onde leu a noticia de tal casamento! Com toda a certeza, a primeira pessoa, que imaginou vêr isto em letra de mão, e o pôz em escriptura, desde que ha letra redonda, fui eu.
Pesa-me do intimo seio que o snr. doutor T. Braga escorregasse na ladeira do meu engano. Já o snr. Felner lhe armou a esparrella da carta de Ayres Barbosa; e eu, mais innocentemente, fil-o casamenteiro de Simão Vaz com Francisca Rebello! É fado esquerdo do snr. Theophilo! Porém, o que tem graça infinita é o snr. doutor fixar o anno do casamento em 1562! Que eu o inventasse, vá; mas que o snr. Theophilo lhe marcasse o anno, é vontade de callaborar nas indiscrições alheias!
Isto não é simplesmente criancice párvoa--é desgraça; é mais que desgraça--é castigo da Providencia, porque o sr. Theophilo ladrou arrogantemente a Castilho, a Herculano, a Garrett, a Rebello, a Varnhagen; e não houve ainda detrahidor tão audaz, tão ignorante, e, sobre ignorante, ridiculo.
O meu lapso procedeu de confundir dous nomes confusamente escriptos em uma arvore genealogica. Simão Vaz de Camões, o libertino parente do poeta, casou com uma sua criada, e morreu sem descendentes. Esta é a verdade. Quem casou em Coimbra com Francisca Rebello, filha de Alvaro [22] Rebello Cardoso, morgado das Caldas, foi Simão Vasconcellos, e não Simão Vaz.
Cá me fica pesando na consciencia o tempo e o papel que o snr. Theophilo desperdiçou. De ambas as cousas tenho escrupulo; menos da data do casamento; que essa é d'elle.
Mas, se o snr. Theophilo substituiu as duas paginas que eram a fonte do erro, porque não supprimiu as correntes que derivam d'essa fonte? Não viu que todas as referencias ás paginas substituidas ficavam incomprehensiveis? O sentimentalismo que enternece o pesar do poeta pela prisão do pai não póde subsistir racionalmente na prisão do primo! Que faz então o snr. Theophilo? Usa processos sobre maneira economicos:
ERRATA
Onde se lê pai, leia-se primo.
E está acabado.
Ninguem me dê definições d'este preceptor infeliz!
Contem-me esta passagem, que eu não preciso cenhecel-o de perto, nem lobrigar-lhe o feitio interior dos camarins do pensamento. É um cháos! Eu já não me admirarei se o snr. Theophilo, depois [23] de esponjar alguns centos de livros, escrever uma Errata geral n'este sentido: onde se lê: Obras de Theophilo, leia-se: Manobras do mesmo.
*
* *
Se o leitor quer, vamos agora farejar sangue de Camões nas veias dos nossos contemporaneos. Não cuide, porém, que vai deliciar-se n'esta leitura. É materia árida, fructo das taes insomnias constantes do proemio do numero primeiro.
Vasco Pires de Camões veio de Castella no tempo de Fernando I. Foi alcaide-mór de Alemquer e Portalegre. Fugiu para Castella, quando o mestre de Aviz se levantou com o reino. Foi prisioneiro em Aljubarrota, perdeu os bens da corôa; mas cá ficou.
Gonçalo Vaz, seu primogenito, instituiu um morgado em Evora, chamado da Camoeira. Não temos que vêr com os outros filhos, cujos descendentes ou foram pobres, ou identificaram os seus haveres nos morgadios do primeiro ramo, á falta de geração.
Succedeu-lhe Antonio Vaz, pai de Lopo Vaz de Camões, cujo primogenito, tambem Antonio Vaz, teve um filho, que outro sim se chamou Lopo, e fez um morgado em Aviz.
[24]D'este ultimo gerou-se D. Anna de Castro, que foi casar a Guimarães com Diogo Lopes de Carvalho, quarto senhor dos coutos de Abbadim e Negrellos no tempo de Philippe II.
Luiz Lopes de Carvalho, 5.º senhor dos coutos, foi assassinado em Guimarães.
Gonçalo Lopes de Carvalho Camões e Castro Madureira, bisneto de Lopo Vaz de Camões, succedeu nos morgados da Camoeira da Torre de Almadafe no termo de Aviz, e da Gesteira no termo de Evora, ambos creados por Gonçalo Vaz de Camões e Duarte de Camões, ultimo representante da varonia, que morreu sem geração, e por isso os vinculos passaram aos descendentes femininos de Lopo Vaz de Camões, que eram os senhores de Abbadim e Negrellos. Existia esta posse em 1692[4].
Thadeu Luiz Lopes de Carvalho, filho de Gonçalo Lopes, casou, depois do anno 1718, em Lisboa, com D. Brites Thereza de Menezes, que morreu muito nova. Celebrou segundas nupcias com D. Francisca Rosa de Menezes e Mendonça, filha de D. Francisco Furtado de Mendonça.
Tiveram filhos varões, que morreram na infancia, [25] e tres filhas que casaram: D. Marianna Luiza Ignacia, com Caetano Balthazar de Sousa de Carvalho, alcaide-mór de Villa Pouca de Aguiar; D. Anna Joaquina, com Gonçalo Barba Alardo Corrêa, em 1751; D. Guiomar Marianna Anacleta de Carvalho Fonseca Camões e Menezes, herdeira, com D. Antonio de Lencastre, governador de Angola--(1772-1179), filho segundo de D. Rodrigo de Lencastre.
Nasceram, entre outros fallecidos na infancia, um filho, que se chamou D. Rodrigo de Lencastre Carvalho Fonseca e Camões, e uma senhora, D. Francisca Rosa de Lencastre, que casou com seu primo Lourenço de Almada, 1.º visconde de Villa Nova de Souto de El-Rei.
D. Rodrigo, herdeiro dos morgadios e senhorios de Negrellos, Abbadim, etc., e sargento-mór do regimento de cavallaria do principe D. João em 1791, casou com D. Maria do Carmo Henriques, filha herdeira de João Henriques, do Bombarral.
No morgado da Camoeira succedeu o 2.º visconde de Souto de El-Rei pelo seu casamento com D. Francisca Felizarda de Lencastre, filha de D. Guiomar de Camões, senhora de Abbadim e Negrellos. Uma filha d'estes viscondes, D. Guiomar, casou com Gonçalo da Silva Alcoforado.
[26]Está, por tanto, o sangue dos Camões em todos os descendentes da mulher do 1.º visconde de Souto de El-Rei. O terceiro ainda se assignou com o appellido Camões. Está igualmente na familia Alcoforado da casa da Silva, na familia da casa de Villa Pouca de Guimarães; nos descendentes de José Bruno de Cabedo, 1.º barão do Zambujal, por linha feminina, pois sua mãi era neta de D. Guiomar de Carvalho Camões e Fonseca; na casa da Pousada em Braga, representada ha quarenta annos por Francisco Xavier Alpoim da Silva e Castro, terceiro neto de Thadeu Camões, senhor de Abbadim.
Em quasi analogo parentesco estão os snrs. Leites de Paço de Sousa, e os snrs. Pachecos Pereiras de Villar, ou de Belmonte.
Não prolongarei esta resenha que de certo, hoje em dia, se ramifica tão copiosamente quanto cumpre imaginar das faculdades reproductoras das pessoas que representam aquelles illustres appellidos.
Falta dizer que Luiz de Camões deixou um filho que não se reproduz, e é immortal: chama-se Lusiadas.
[1] Adiante se verá que fui inexacto n'esta noticia.
[2] Este Simão Vaz de Camões era filho de Duarte de Camões de Tavora, filho de outro Simão Vaz de Camões, senhor do morgado da Torre. Casou Duarte com D. Isabel Lobo, filha de Ayres Tavares e Sousa, de quem houve, além de Simão Vaz de Camões, Luiz Gonçalves de Camões, e D. Maria da Camara, que casou com Francisco de Faria Severim. Quanto ao Simão que viveu em Coimbra, diz o linhagista que se casára á sua vontade, como quem desfaz na estirpe da esposa.
[3] A pag. 417 amplia o traslado do meu artigo, escrevendo: a qual casou depois em segundas nupcias com Domingos Roque Pereira.
[4] Veja Memorias resuscitadas da antiga Guimarães, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 361.
Antes do traslado, darei breve noticia do livro de outro viajante bem creado que nos visitou mais de espaço em 1730. A Description de la Ville de Lisbonne, impressa em Paris, n'aquelle anno, é facil de encontrar em Portugal.
Este viajante esteve no paço da Ribeira. Viu as riquissimas alfaias do vasto palacio. Reinava D. João V, o Salomão do occidente. Que valores não sorveu aquella vasa do Terreiro do Paço vinte e cinco annos depois!
Uma cousa achou tristissima o viajante; eram as noites de Lisboa:
«Esta grande cidade (diz elle) não é alumiada de noite, e é isso causa a que um homem se veja em embaraços para acertar com o seu caminho, e soffra sobre si os despejos de immundicies que lá se atiram das janellas ás ruas, porque as casas não tem latrinas. A obrigação de cada qual é levar essas immundicies ao rio, para o que ha negras que se occupam n'este serviço muito baratas; [28] mas a plebe não quer saber d'essas ordens. Nas ruas não se anda de noite com bastante segurança, salvo quando se é, como lá dizem, embuçado, isto é, quando se envolve a gente em um farto capote, desde a cabeça até ás canellas: é um trajar exquisito, de que usam as pessoas mais qualificadas, e até os principes, como trajo privilegiado e respeitado. O respeito que se tem a esta especie de mascara, vem de impedir que os taes se reconheçam, e do receio que o disfarce encubra armas de fogo prestes a disparar-se sobre quem os insultar ou quizer conhecer... Lisboa não tem passeio algum, nem divertimento de nenhuma casta a não ser um mau theatro hespanhol. Os fidalgos, não obstante, frequentam este theatro; e, depois que sahem[5] vão gastar o restante do dia a passear nas suas carruagens, na praça do Rocio, onde palestream até á noite, sem sahir das carruagens. As cadeirinhas usam-se muito, e as liteiras estão na moda das damas distinctas e dos velhos; mas, por conta das ruas intransitaveis, os coches são raros.»
Fallando de estalagens, diz que eram quasi todas francezas, inglezas e hollandezas, sendo a [29] melhor de todas uma franceza na praça dos Romulares, onde o passadio de cada dia custava 6 francos.
Attribue a carestia á diminuta concorrencia de estrangeiros, que se hospedem fóra das casas dos amigos.
Já n'aquelle tempo, pelos modos, era mais barato hospedar-se a gente em casa dos amigos. N'este particular, não adiantamos nada. Outros forasteiros, que não tivessem amigos em Lisboa, costumavam alugar quartos, com uma banca, seis cadeiras de palha, louça de barro, e cama no chão, constante d'uma enxerga e duas cobertas, que á noite se desdobram sobre uma esteira de junco. Diz elle que nas hospedarias era peor.
Conheceu o sujeito em Lisboa uma senhora portugueza, casada com um negociante francez, de Bayonna. A tal senhora via o que se passava no interior do corpo humano e nas entranhas da terra, não tendo nos olhos senão grande belleza. Incommodava-se-lhe a vista quando divisava nos reconditos escaninhos da economia animal abscessos asquerosos. Via os phenomenos physiologicos da digestão, e dizia se o feto no ventre materno era macho ou femea, aos sete mezes. Na profundeza de 30 ou 40 braças descobria mananciaes d'agua. Estas prerogativas extraordinarias [30] só as gozava em quanto estivesse em jejum; algumas vezes, porém, á hora de sesta, refinava no condão de vêr os rins de um homem gordo através do capote. Os descobrimentos de agua, já para o rei já para os particulares, o voto dos sabios e dos ministros, em fim, os incontroversos prodigios d'esta mulher grangearam-lhe a mercê regia do dom e o habito de Christo para seu marido.
O padre Le Brun, no anno seguinte á publicação d'este livro, metteu a riso a historia da lisboeta. (Veja Histoire critique des Pratiques superstitieuses, etc., l. 1.º, cap. 6, edição de Amsterd. 1733). Mas o cavalheiro de Oliveira que demorava então em Londres, onde publicava o seu Amusement periodique, a pag. 274 e seguintes do 2.º tomo, impugna a incredulidade do francez, com as seguintes razões. E note-se, primeiramente, que Francisco Xavier de Oliveira foi o portuguez mais incredulo do seu tempo; e, se não fugisse de Portugal, teria sido queimado como herege.
Diz elle:
«Eu não subscrevo ás suspeitas de impostura que o padre Le Brun irroga á mulher portugueza, porque a conheci pessoalmente, tendo ella entre onze e doze annos. Vi-a, pela primeira vez, em Paço d'Arcos na quinta de Jeronymo [31] Lobo Guimarães, onde fôra para indicar o ponto onde havia agua. Do primeiro lanço de olhos, apontou o sitio. Lobo fez cavar no ponto indicado, e achou agua abundantemente. Verdade é que ella marcava entre seis e sete braças; e a agua borbulhou na profundidade de oito. Tambem é certo que, estando eu vestido, ella me disse positivamente os signaes todos que eu tinha na pelle, e o mesmo fez a cinco pessoas presentes. Afianço isto como testemunha ocular. Que ella visse através da pelle, nunca ouvi dizer...»
Prolonga-se o cavalheiro de Oliveira abonando os prodigios contrariados por Le Brun, e prosegue:
«Declarou esta menina que não podia entrar em igrejas e atravessar cemiterios, por causa do horror que lhe faziam os cadaveres enterrados, que ella via podres debaixo das lapides. Todos os tribunaes, e maiormente o do santo officio, tomaram conhecimento d'esta declaração. Abriu-se um tumulo como experiencia, e achou-se o cadaver qual ella o descrevera, antes que levantassem uma grossa lousa. Não sei que destino teve [32] esta mulher: o que sei é que nem a inquisição nem algum tribunal a inquietou[6].»
Proseguindo na viagem do admirador da prodigiosa lisboeta, refere elle algumas cousas da côrte de D. João V que precisam ser esclarecidas.
Numera os officiaes, que servem a casa real, e diz que, áquelle tempo, o officio de mordomo-mór tinha vagado, em consequencia de ter fugido de Portugal em 1724 este empregado do paço com uma das mais formosas damas do reino, esposa de um fidalgo. E acrescenta:
«O rei mandou depós os fugitivos um esquadrão de cavallos; mas como elles levavam um dia de avanço, e correram á desfilada, a tropa não logrou apanhal-os; por maneira que chegaram a Vigo[7], na Galliza sem embaraço. Com tudo, breve lhes foi o contentamento; porque o bispo d'aquella cidade fez entrar a dama em um mosteiro, e o fidalgo retirou-se para Madrid. O marido da fugitiva vestiu-se de luto, assim que soube da fuga; e, conforme o prejuizo do paiz, ou como lá dizem os portuguezes, porque tinha barbas, [33] jurou não apparecer mais sem matar o raptor, e matar ou enclausurar para sempre sua mulher.»
No immediato numero saberá o leitor quem foram os personagens d'este caso, que envolve tragedia digna de livro de maior fôlego.
[5] Vê-se que as representações eram de dia.
[6] São rarissimos ou talvez unicos em Portugal, estes livros do cavalheiro de Oliveira. Diz elle que apenas tinha na sua patria dous assignantes, e um era Jacome Raton.
[7] É erro: foi em Tuy.
Ayres Ferreira, da casa dos senhores de Cavalleiros, e couto de Frazão e Marvilla de Couros, viveu em Barcellos, no tempo de D. João III.
Teve quatro filhos e duas filhas.
Os rapazes, á excepção de um que morreu na infancia, foram todos servir na India: eram Ruy, Alvaro e Gonçalo.
As meninas professaram, e foram abbadessas perpetuas no mosteiro de Cós.
Os tres soldados grangearam fama no Oriente; e Ruy Ferreira de Mendonça, o mais velho, avantajou-se [34] nas proezas--nas crueis façanhas que os Coutos e Barros chamaram proezas.
Não lhes desluzam, por isso, a memoria. Era seculo de trevas e de missionarios. Reinava D. João III, o inquisidor. Cada qual é do seu tempo. Se algum contemporaneo, como o bispo de Silves, protestou contra o fanatismo sanguinario, deve-se o protesto honroso a não ter ido lá o insigne escriptor. Se fosse, pegaria d'elle a contagião da carnagem, a peste d'aquelle ar infecto da sangueira, o colera que accendia sêdes de cubiça insaciavel.
No seu solar de Barcellos ficára Ayres Ferreira, sósinho e triste. Doia-lhe mais que tudo a saudade de Ruy, o seu primogenito, que lhe fugira, ancioso de batalhas, e invejoso dos irmãos, cujos nomes começaram a ser laureados na Asia em 1543. N'aquelle tempo, um mancebo de appellido Goes, renunciava esse appellido, que era o de seu progenitor, em affronta ao pai que lhe impedira servir as armas na India!
Um dia, Ruy Ferreira de Mendonça recebeu em Goa carta de seu pai, queixando-se dos filhos que o deixaram velho, desamparado, e exposto aos affrontamentos de quem já lhe não temia o braço alquebrado por annos e desgostos.
E contava que o abbade de Creixomil, clerigo [35] fidalgo e possante, ousára pôr-lhe as mãos nas barbas.
Ruy sahiu com a carta de seu pai em demanda do vice-rei a pedir-lhe licença para vir ao reino. O vice-rei negou-lh'a, com o intento de evitar um crime, privando-se de um dos seus mais valentes capitães. E, sabendo que o fidalgo lhe não obedeceria e se andava negociando clandestinamente passagem nas náos, deu-lhe ordem de prisão até que os navios levassem ancora.
As náos abalaram, e Ruy foi posto em liberdade.
Apenas livre, correu á barra, avistou ao longe o velame, arrojou-se ás ondas, e nadou na esteira d'ellas. Quatro horas bracejou, reagindo ao sossobro, que já o levava de vencida. Favorecido por subita calmaria, as náos balouçavam-se paradas, e as vagas alisaram-se como lago de aguas estanques. Viram da amurada o homem que nadava. O capitão, que lhe quizera dar passagem occulta, suspeitou quem fosse, e mandou, uma lancha com oito remadores ao encontro d'elle. Colheram-o reanimado, mas em tamanho quebranto de forças que levou dias a restaurar-se. Tinha cortado duas leguas de mar!
Desembarcou em Lisboa, e seguiu para o Minho.
[36]S. Thiago de Creixomil, abbadia do então chamado Couto de Fragoso, demorava no termo de Barcellos.
Ahi vivia o clerigo que affrontára Ayres Ferreira.
Ruy, antes de se avistar com o pai, bateu á porta do abbade, e enviou-lhe o seu nome.
O fidalgo tonsurado desceu ao recio da sua residencia, empunhando a espada de cavalleiro. O soldado da India rejubilou quando viu o adversario armado. Vexava-o ter de matar um inerme. Travaram-se os dous gladios; mas que prelio tão desigual entre o guerreiro experimentado e o fidalgo que sabia apenas a esgrima de curioso! Á volta de poucos botes, o abbade de Creixomil cahiu traspassado do peito ás costas, ouvindo estas vozes frementes de odio:
--Perro! não pozesses as mãos nas barbas de um velho!
E depois foi beijar a mão a seu pai, com quem se demorou algumas horas, e partiu para não perder a passagem das náos que estavam de vela para a India.
E lá foi ceifar novos louros.
Passados annos, o solarengo de Barcellos morreu, e foi sepultado na capella do Santissimo Sacramento [37] da igreja matriz de Barcellos, onde estavam os ossos de seus paes e avós.
Ruy Ferreira voltou ao reino, e succedeu na casa de seu pai.
Ninguem lhe pediu saldo de contas com os descendentes do abbade que naturalmente os tinha, de collaboração com as mais nitidas ovelhas do seu rebanho.
Disputou a posse do morgadio de S. Pedro de Fajozes, no concelho da Maya, a sua prima D. Joanna de Eça, da casa de Cavalleiros. Ganhou a demanda.
Em seguida, casou com D. Philippa de Athaide, filha de Martim Lopes de Azevedo, decimo primeiro senhor da casa e solar d'Azevedo e da Villa de Souto.
Tiveram seis ou mais filhos; parte d'estes morreram na India.
A representação d'esta casa, volvidos 60 annos, estava em Duarte Pacheco Pereira, governador de Ormuz, descendente do heroe desgraçado que teve aquelle nome; porque um bisneto de Ruy, chamado Luiz de Mendonça, casou com D. Guiomar de Albuquerque, neta de Duarte Pacheco Pereira.
[38]Eu não sei se algum dos trinta e quatro barões que conheço, estando no Brazil, e sabendo que seu pai, o tio Antonio da Thereza, foi espancado pelo estadulho do tio Joaquim da Thomazia, seria capaz de vir da rua da Quitanda desaffrontar o seu velho progenitor! Acho que não; e faria muito bem. Ha 300 annos, aquelle Ruy poz o abbade a dormir o somno eterno, cavalgou na sua mula, e lá foi socegadamente para Lisboa, e de Lisboa para a India. Hoje em dia, se o barão de Ranhados matar o Januario do Quinchoso, que lhe bateu no pai, o mulherio grita á d'el-rei, o regedor participa ao administrador, este faz uma circular telegraphica para os quatro pontos cardeaes, e o barão, quando chegar, mais aqui ou mais além, dá de cara com dous policias, e depois bem sabemos o resto.
Mudaram os tempos pela mesma razão que mudaram os fidalgos. Não ha pai por filho nem filho por pai, em quanto se ganha dinheiro.
Entre heroismo antigo e dinheiro moderno está um fosso. Quem quizer palmilhar de salto as duas orlas do abysmo cahe no ridiculo ou... nas mãos da policia.
[39]Cá está outra que me parece mais sensata que a primeira. O premio, infelizmente para o verdadeiro merito, era já distribuido. Não obstante, o snr. Bibliophilo ha de ser galardoado. A minha livraria é pobre: não vejo livro digno de s. s.a; mas vou munir-me de duas joias litterarias, que submetto á escolha do douto letrado.
Disponha, pois, s. s.a do Faust do snr. Joaquim de Vasconcellos, ou dos Originaes opusculos do snr. Jayme José Ribeiro de Carvalho. A primeira, bem que não trate de hygiene, é drastica; a segunda, posto que entenda com a sciencia dos derivativos, corre parelhas com a utilidade da primeira. D'este modo, dou testemunho publico da consideração que me merece o bibliophilo, e fio muito dos dous offerecidos authores a lapidação do seu espirito, que reslumbra e rasga na seguinte carta destinos de nenhum modo chochos.
[40]«Snr. redactor das noites de insomnia.
«Estimo esta occasião de o informar de um caso que succedeu em 1693, e esclarece completamente as suas duvidas a respeito do augusto forasteiro que tres pontifices sentenciaram rei de Portugal.
«Tenho a satisfação de possuir um folheto rarissimo que meu avô conseguiu salvar no incendio da livraria do conde da Ericeira, em 1755. É conhecido outro exemplar no Museu britannico. E eu preso-o tanto que não me desfiz d'elle, quando me offereceram em troca as obras completas do doutor Theophilo, e sete menos cinco em dinheiro.
«Intitula-se a minha raridade: Relaçam do sucesso que teve o patacho chamado Nossa Senhora da Candelaria da Ilha da Madeira, o qual vindo da Costa de Guiné, no anno de 1693, huma rigorosa tempestade o fez varar na Ilha incognita. Que deixou escripta Francisco Corrêa, mestre do mesmo patacho, e se achou no anno de 1699, depois da sua morte. Impresso em Lisboa em 1734.»
«Aproveitando as suas insomnias, vou dar-lhe muito resumida a substancia do referido opusculo.
[41]«Conta Francisco Corrêa que, ao avistar as ilhas de Cabo-Verde, toldou-se repentinamente o céo, e logo uma nebrina escura fez noite a bordo, a termos de se não conhecerem os tripolantes. De subito, pegam de esfuziar nas gaveas repellões de ventania, e os relampagos a fuzilarem, e logo as nuvens negras a abrirem-se em jorros de chuva.
«Traquete e mezena voaram. A embarcação fez agua por todas as pranchas descosidas; e, apesar de esforços desesperados, não vingaram cegar os sorvedouros. Quinze eram os nautas que se deram em uma jangada á misericordia divina. Ao abrir da manhã, avistaram a leste uns morros pardacentos; mas como não tinham governo que alli os proejasse, deixaram-se ir na corrente e á mercê de Deus até varar em terra.
«Em quanto se reparava a embarcação, o mestre do patacho, com Manoel Antunes e João de Arruda, embrenharam-se no matagal com os arcabuzes bem cevados. Viram mono de oito palmos, e dentes de duas pollegadas e meia; viram cobras grossas como pipotes de oito almudes; e viram a final uma mulher marinha que Francisco Corrêa descreve d'este feitio:
«Tinha todas as perfeições até á cinta, que se [42] discorrem na mais formosa, e sómente a desfeavam as grandes orelhas que tinha, pois lhe chegavam abaixo dos hombros, e quando as levantava, lhe subiam a distancia de mais de meio palmo por cima da cabeça. Da cinta para baixo, toda estava coberta de escamas, e os pés eram do feitio de cabra, com barbatanas pelas pernas. Tanto que se viu no monte, presentindo ser vista, deu taes berros, que estremecia a ilha, pelo retumbo dos echos; e sahiram tantos animaes, e de tão diversas castas, que nos causou muito medo. Arrojou-se finalmente ao mar pela outra parte com tal impeto, que sentimos nas aguas a sua vehemencia. Todos se assustaram, menos eu, pois já tinha visto outra no cabo de Gué; e tinha perdido o medo com outras semelhantes apparições; e me lembra, que junto a Teneriffe vi um homem marinho de tão horrendo feitio, que parecia o mesmo demonio. Tinha sómente a apparencia de homem na cara, na cabeça não tinha cabellos, mas uma armação, como de carneiro, revirada com duas voltas; as orelhas eram maiores que as de um burro, a côr era parda, o nariz com quatro ventas, um só olho no meio da testa, a bocca rasgada de orelha a orelha, e duas ordens de dentes, as mãos como de bugio, os pés como de boi, e o corpo coberto de escamas, mais duras, que [43] conchas. Uma tempestade o lançou em terra, e taes bramidos deu, que entre elles expirou, e para memoria se mandou copiar a sua fórma, e se conserva na casa da cidade d'aquella ilha.»
«Ao terceiro dia, 8 d'agosto de 1693, ouviram uma voz lá dos reconcavos da serra, a bradar: Portugal! Castella! Seguindo a toada das exclamações, toparam um homem de venerando aspecto, que lhes fallou assim:
«Graças a Deus Senhor; infinitas graças vos dou, por me chegardes a tempo, depois de tantos annos, em que eu visse gente da Europa; e logo olhando gravemente, e cortez para nós, disse: Senhores, de que nação sois? Nós pasmados, não acertavamos a responder; e conhecendo elle o nosso susto, nos animou brandamente, rogando-nos para a sua pobre habitação, aonde entrámos, e sentados em um tosco pau, nos fallou com taes palavras:
«Senhores, sois portuguezes, ou castelhanos? Respondei sem susto; que não tendes, quem n'esta ilha se opponha aos vossos designios. Se me procuraes, para acabardes com a minha vida, aqui me achaes sem resistencia, e sem defensa mais que a de Deus; e como de tanto viver estou aborrecido, [44] grande favor me fazeis em me alliviardes de tão grande penalidade. Eu, que respeitava a sua pessoa, desejando satisfazer á sua pergunta, o certifiquei de que eramos portugueses, que arribáramos com um grande temporal áquella ilha: do que, tanto que me ouviu, posto de joelhos, levantadas as mãos, pondo os olhos no céo, soltando as lagrimas, deu graças a Deus, dizendo: Ah bom Deus, quão grande é a vossa infinita Providencia! E levantando-se, nos abraçou, e saudou, dizendo: Meus portuguezes, meus portuguezes; sem que as lagrimas cessassem: e levando-nos para o interior da cova, nos fez sentar junto a si, perguntando-me pelos companheiros, e pelo nosso infausto successo, de que lhe démos larga conta. Perguntou-nos quem reinava em Hespanha, e sabendo que em Castella reinava Carlos II, e em Portugal D. Pedro II, suspirando com alvoroço, disse: E Portugal tem rei! Oh Deus immenso, que te lembraste do teu reino! E dizendo-lhe nós como fôra acclamado el-rei D. João IV, e os milagrosos successos d'aquelle dia, não cessava de mostrar o gozo, que interiormente sentia: e logo repetindo novas lagrimas, suspiros, e soluços, nos perguntou pela conquista de Africa, ao que respondemos dando-lhe conta, do que sabiamos, e como desde a batalha, que perdera el-rei D. Sebastião, se não [45] continuára, tomando-se horror a tal terra: e desejosos nós de sabermos com quem tratavamos, lhe pedimos nos consolasse, dizendo-nos, quem o levára áquella ilha incognita, e não arrumada nas cartas, e roteiros; ao que satisfez com taes palavras:
«No tempo, que Philippe II entrou com violencia em Portugal, se retirou muita gente, por não vêr o seu reino recuperado das mãos dos mouros pelos nossos ascendentes, sem ajuda dos visinhos, sujeito a principe estranho. Muito tempo andei retirado, discorrendo pelo interior da Africa, passei á Palestina, e outras terras, tendo tantos trabalhos por muito suaves, na consideração, de não vêr com os meus olhos o quanto padeciam os meus naturaes; e passados alguns annos, passando á Europa, cahi nas suas mãos; e entregando-me a certos homens, me levaram a uma embarcação na bahia de Cadix, que promptamente se fez á vela. Tinha o cabo ordem particular para que em certa altura me lançassem ao mar, sem que me ouvisse, nem me deixasse fallar; e notando elle as minhas acções, e innocencia, suspendeu a execução; até que na altura de Cabo Verde, me intimou a ordem com tanto pezar, que bem entendi o desejo que tinha de me favorecer. Preparou-se uma lancha, o melhor que se pôde, [46] e n'ella se pôz mantimento para tres dias. Entrou logo a animar-me, exhortando-me a que confiasse em Deus, que me poderia livrar do perigo, a que me haviam de expôr: e me mandaram baixar á lancha, o que não quiz executar, sem me confessar, e me preparar espiritualmente, para entregar a alma a Deus; que tudo se me concedeu; e tanto que baixei, cortaram o cabo, e me entregaram á disposição das ondas. Não perdi o animo, antes constante soffri este golpe, esperando, que Deus olhasse para a minha causa; e nadando a lancha livremente, na manhã seguinte de 4 de outubro, cheguei por acaso a esta ilha, em que habito sem que no discurso de tantos annos visse alguma creatura racional. Penetrei o interior, encontrando a piedade nos brutos, que não experimentei nos homens; e descobri esta concavidade, que a natureza devia ter obrado para meu abrigo. Aqui me recolhi, aqui tenho passado tantos annos, sustentando-me com datiles, e outras frutas. Vivo, e não sei para o que vivo; Deus sabe o para que.»
«O testemunho do narrador, confirmado por Manoel Antunes e João de Arruda, assevera-me que se alguma vez houve D. Sebastião era aquelle. Muito instaram os nautas que se deixasse levar [47] a Portugal; «mas elle--acrescenta o mestre do patacho Nossa Senhora da Candelaria--encarecidamente nos pediu com as lagrimas nos olhos, que o não precisassemos a tal jornada, pois não chegára ainda o tempo de passar a Portugal; que pelo amor que nos tinha, o lançassemos, terra firme, em qualquer parte da Africa; e que debaixo da palavra que lhe haviamos de dar como portuguezes partiria comnosco; o que lhe juramos. Perguntamos-lhe se tinha alguma cousa na sua cova, que embarcasse; e respondeu, que desde que n'ella entrára não cuidára mais que viver para Deus; e que todos os annos lavrava por suas mãos uma tunica de folhas de palma, para cobrir honestamente o corpo; na cova não tinha mais que uma cruz, que por suas mãos fizera de madeira; e que essa deixassem, para que n'aquella terra ficasse o signal da nossa redempção; e quando ella se povoasse nos tempos futuros se acharia tambem a noticia do seu habitador. Embarcou-se comnosco, beijando a terra, com muitas lagrimas; e fazendo-nos á vela, esteve em nossa companhia dous dias e meio, em que nos contava monstruosidades d'aquella ilha; e satisfazendo ao seu pedimento o lançamos em terra duas leguas distante de Arguim, expondo-lhe os perigos a que se expunha, sem que o podessemos [48] persuadir a suspender o desembarque em terra de barbaros; ao que respondia, que Deus que o conservára até aquelle tempo, o livraria de todos os perigos.
«Despediu-se de nós com tantas lagrimas, e gosto, que bem mostrava as saudades, que de nós levava, e o quanto se alegrava de passar áquella terra. Abraçou-nos a todos, e saltando em terra, a beijou, e levantando as mãos agradeceu a Deus as mercês que lhe fizera, e esperava receber da sua piedosa mão; e penetrando aquella costa inculta, nos deixou sentidos pela falta da sua companhia. Jámais podemos alcançar, o sabermos d'elle, a sua patria, e nome; divertindo a resposta politicamente com tanta gravidade, que nos não dava confiança, para instarmos; e sómente ao despedir me disse, que a seu tempo o saberiam os nossos descendentes; e dizendo-lhe eu nos consolasse ao menos declarando o tempo, nos disse: que Deus o sabia.
«Varios discursos fizemos sobre este homem, conservado por tantos annos n'aquella ilha, e agora caminhando por taes desertos; e nos persuadimos ser cousa maior. Deus o leve, e traga a salvamento.»
«Confronte agora v. as datas das sentenças [49] dos tres pontifices, e deprehenda que D. Sebastião, tendo corrido a Palestina e varias terras como elle disse aos marinheiros, muito é de crêr que estivesse em Roma nas tres épocas assignaladas na sentença.
«Quanto á circumstancia de estar então o rei bastante avançado na idade--pois tinha 137 annos--isso é controversia que pertence á alta philosophia e não ao calendario decidir. São os porquês de Deus, dos quaes, sobre o mesmo assumpto, escreveu o doutissimo padre Antonio Vieira:
«Demais que os porquês de Deus são incomprehensiveis, e das suas razões não póde o entendimento humano dar razão; quanto mais, que Deus Nosso Senhor sempre faz as suas cousas grandes, e com grandes milagres. Bem podia Deus dar no tempo do Anti-Christo padres, que a este prégassem, e com tudo guarda ha tantos annos a Enoch e Elias: outras paridades podéra trazer se a brevidade as permittira.
«... Ou este rei morreu, ou não! Se morreu, aonde? Na batalha, ou fóra d'ella? Se fóra d'ella, quem o testemunhou? Se morreu na batalha, como não acharam os mouros o despojo, que tanto desejavam, e procuravam? Se morreu no rio, como veio a sua espada? Como mandou o [50] cardeal D. Henrique aos que se fingiram reis inquirir e perguntar se eram o verdadeiro rei? Se lhe a elle constára a sua morte, nunca fizera tal inquirição; e a quem melhor podia constar, senão a elle? E bem se viu, que lhe não fez exequias, nem officios, sendo um ministro da igreja, a quem verdadeiramente tocava como rei, como tio, como prelado e por obrigação. Mais: se morreu, como esteve depois em Veneza, e Napoles, preso e desprezado, o que consta evidentissimamente, o qual successo refere Lucio Floro nos seus Annaes, e D. João de Castro, que foi testemunha de vista, o escreveu; e todas as circumstancias d'isso, e os prodigios, que então succederam o confirmam, os quaes no quarto fundamento d'este discurso mostraremos? Mais: que o snr. rei D. João IV o testificou e contou, o que é uma mostra de evidencia certa, e outras muitas, que é trabalhoso o referil-as por papel.»
«Responda-lhe, se póde.
«Muito venerador
«Bibliophilo.»
[51]Não tenho que responder. S. s.a cuidará que eu sou menos sebastianista que a sua pessoa?
Já lhe disse que escolha uma das obras citadas, e... sabe que mais? mande-as buscar ambas, que as merece.
Tantas vezes o noticiarista repete que eu sou assignante do seu papel, que parece estar-me convidando a declarar a razão por que assignei.
Eu lh'a digo ao noticiarista. Foi para me regalar com as inepcias do folhetinista.
Quer-me parecer que os dous são um e mesmissimo tolo (com licença: não diga que sou incivil).
Se os dous não são homogeneos, então tenho centauro pela frente. Em cima, no noticiario, está a porção humana do aborto; em baixo, no folhetim, está (com a devida cortezia) a porção bestial do mesmo centauro.
[52]Mas ha lanços em que o centauro se cabriola de feitio que a metade debaixo esperneia em cima; e a gente, a meia volta, não sabe já onde está o homem, nem onde está (com a divida venia) a bêsta.
O noticiarista, que me dizem chamar-se Silva Pinto, consinta que eu, por conveniencias da composição e da variedade da fórma, lhe não chame sempre centauro e tolo. Obriga-me a pedir-lhe licença todas as vezes em obsequio á urbanidade. O melhor é chamar-lhe, como variante, Silva Pinto.
O snr. Silva Pinto começou no n.º 16 da Actualidade a traduzir romances de Balzac.
Ai da nomeada do eminente explorador da alma, se Balzac podesse espelhar-se na fusca photographia que lhe tirou este encarvoador de paredes caiadas!
Eu não me despendo em considerações banaes acerca das difficuldades que empecem trasladar a portuguez os livros de Balzac.
Quem entende as galas dos classicos francezes, e as encontra condensadas no author dos Contes drolatiques, ainda que lhe sóbre igual saber da linguagem portugueza, ha de vêr-se em apuros para moldurar em estylo vernaculo as concisões, [53] os idiotismos, a energia, o atticismo de Balzac.
Quem se afoutaria aos espinhos da empreitada? Um sujeito ignorantissimo de ambos os idiomas: o snr. Silva Pinto.
E, sem mais delongas, vou provar-lh'o. O leitor faça-me o obsequio de se prover do n.º 16 da Actualidade, e abrir isso onde começa o martyrio de Balzac. Não me demoro a mostrar-lhe que tudo ahi tresanda bafio francez, sem um torneio de phrase portugueza, sem um resalto que denote primor, ou sequer um dizer que não venha gafado de construcção gallicista. Isso é o menos. Vamos ás tolices mais lerdas:
Balzac, descrevendo um sujeito, a quem os seus amigos chamavam tempo-brusco, dá a razão do epitheto n'estes termos:
Il ne se rencontre en effet chez lui ni lumière trop vive, ni obscurité complete.
E vai agora o snr. Silva Pinto, parvoejando, traduz:
Effectivamente, estão banidas por elle de sua casa tanto a luz demasiado viva como a escuridão completa.
Viram? chez lui--de sua casa. Incrivel!
Balzac, interpretado por um portuguez medianamente versado na sua lingua, quiz dizer:
[54]Não ha que esperar d'este homem grandes luzes nem grandes trevas.
Mas... a casa do homem! Quando quiz Balzac saber se o sujeito tinha luz ou estava ás escuras em casa? Quem estava em escuridão completa sabemos nós.
Adiante.
Balzac descreve uma senhora rodeada de homens desvanecidos, gentis, espirituosos, de notavel fama ou nome illustre, de baixa e alta condição, e acrescenta:
Auprès d'elle tout a blanchi.
O snr. Silva interpreta assim a phrase:
Tudo isto via embranquecer á beira d'ella os proprios cabellos.
Quer dizer: áquelles homens, quando conversavam com aquella senhora, embranqueciam-se-lhes os proprios cabellos.
Esta sandice faz-me compaixão. Se vejo outra assim, emigro.
Balzac queria dizer: todos estes homens de prestigio, de galhardia, de renome, aos olhos d'ella, tout a blanchi, «eram como se fossem velhos». Não lhe inquietavam o coração, não lhe perturbavam a serena indifferença, etc.
Adiante.
Referindo-se á insensibilidade d'esta dama, [55] acrescenta Balzac: Certaines femmes coquettes sont capables de suivre ce plan la. O author quer dizer: Certas mulheres galanteadoras tem artes de dissimularem os mesmos geitos; mas o snr. Pinto, subtrahindo o coquettes que dá o relevo ao confronto, diz espalmadamente:
Ha mulheres capazes de seguir... aquelle plano.
Chatissimo!
Balzac diz que Eugène de Rastignac... avait plus d'une fois regardé la marquise de manière à l'embarrasser.
Traducção do centauro:
Olhava de quando em quando a marqueza de modo capaz de embaraçal-a.
Ha aqui um fartum de rapaz de escola, que faz engulho. Como é que os olhos embaraçam a dama? Com os rudimentos da lingua, um traductor menos soez diria:
Fitou-a algumas vezes de modo que a inquietou, ou enleou, ou perturbou. Abstenho-me de extrahir dos diccionaristas as indecencias subentendidas na phrase embaraçal-a.
Adiante.
Balzac diz que o personagem etait commodément assis, et avait les pieds plus souvent sur ses chenets que dans sa chancelière.
O tal Pinto estraga d'esta arte:
[56]Estava commodamente sentado e aquecia mais frequentemente os pés no brazeiro do que no traste forrado de pelles, destinado para tal fim.
No traste forrado de pelles!
Chancelière,--uma palavra diluida em nove!
Podia elle, avisinhando-se da indole da lingua, traduzir capacho, ou ceirão de félpo, ou guarda-pés, ou pelliça, por analogia com os mantos forrados de pelles; mas... traste! Salvo seja!
E traduzir chenets para brazeiro!
Este brazeiro deu-lhe provisão para tolejar á larga, e afogar no tinteiro as palavras que não percebeu.
Logo em seguida, escreve Balzac:
Oh! avoir les pieds sur la barre polie qui reunit les deux griffons d'un garde-cendre, etc.
Querem vêr o que é uma traducção sovina?
Oh! conservar os pés junto ao brazeiro... E acabou-se.
Áquelles griphos embucharam-no ao bom do Pinto! Passou por aquillo como o leitor e eu pelas legendas arabes da sé velha de Coimbra. Com a sua crystallina ignorancia, privou o leitor de entender o suave sybaritismo do personagem que, refestellado na poltrona, recostava os pés no varandim lustroso que entre-une os dous griphos do cinzeiro. Percebeu elle que os fogões tem um receptaculo, [57] que recebe a cinza, ao través de uma grelha, e que os ha ladeados de figuras que formam entre si o apoio dos pés? Não percebeu nada.
Senhores leitores do Balzac, segundo a Actualidade:
O homem que nos vai apresentar o author da Comedia humana, vestido de farrapos bordalengos, é esse que ahi fica... ás moscas, até ao numero seguinte.
*
* *
Agora, duas palavras graves.
O snr. Theophilo Braga mandou acorrentar este house-dog á porta da Actualidade. Fez mal. Eu tinha-me recolhido mansamente ao silencioso espanto das arrancadas que os cafres faziam no campo arroteado pelos Castilhos, Garretts, Herculanos, e outros somenos lidadores d'essa ala que ahi está exposta ás injurias de tanto biltre. Era meu proposito deixal-os cavar a sepultura d'elles com o seu proprio escoucear phrenetico.
Logo, porém, que o rafeiro mais refilado da matilha me latiu á sombra, quando eu nem sequer o estremava dos anonymos que desprezo, sacudil-o-hei á cara dos que o açulam, e fal-o-hei portador das minhas caricias aos que o alimentam, [58] em conformidade com o proverbio: An hungry dog will eat dirty pudding.
Um é o arranjador dos Musicos e de outras maravalhas.
Outro é Theophilo que tambem é Joaquim.
E tambem é Fernandes.
Expungiu o nome e o appellido, logo que se aforou em letras.
Joaquim Fernandes era a parte chata do sujeito.
Desfez-se d'isto, poz-se ás cavalleiras do genio, e apregoou-se Theophilo Braga[8].
Aviso á posteridade:
Elle era Joaquim!
A fatalidade dera 2 a Portugal, no mesmo seculo.
[59]Gemeos, homogeneos, homonymicos, productos de gravidez longa, parto feito a urros, ferozes no nascedouro, ringindo com dentes anavalhados, ao tempo que a lisonja os lambia, para os ageitar, como a ursa faz aos seus cachorros.
E que cachorros!
*
* *
Nem os sepulcros respeitam.
Remetteram contra um, simultaneamente, os 2 Joaquins.
A sepultura era de gigante que o leitor, se não o viu, ainda o vê na projecção da sua imagem pelas paginas do livro amado.
Chamára-se, n'esta vida, Almeida-Garrett;--e chama-se hoje a gloria imperecedoura de Portugal.
O Joaquim, que se expurgou de Fernandes, para escoucear o cadaver de Cesar, disse...
Mas, antes de reler-se o que elle disse, veja-se o que escreveu o editor de Helena, romance posthumo e incompleto do author de Fr. Luiz de Sousa:
«Acabava o anno de 1854; ás primeiras cerrações do outomno inclinára mortalmente a fronte o snr. visconde de Almeida-Garrett, sentindo no [60] coração os aggravos da doença que, dentro em pouco e para sempre, havia de apagar-lhe a luz dos olhos.
«Cresceu o mal. Imminente o perigo, durante os poucos mezes em que a vida lhe fugia, quiz o nobre enfermo dizer o ultimo adeus ás queridas producções do seu elegante espirito. Era então que a voz quasi infantil da filha idolatrada lhe dizia os seus livros todos; foi então que, revendo o archivo dos seus papeis, elle rasgava os que não deviam sobreviver-lhe, guardando aquelles que, de mão propria, legava á posteridade. Era um sol no occaso, revendo-se na luz immensa com que alumiára a patria.
«Finda a leitura, prompto o legado, extinguiu-se aquella existencia esplendida, abraçada á cruz de Christo, abençoando a herdeira do seu nome, e embalada pelos cantos da sua propria harpa. Fim sublime! Sentiu no ultimo suspiro,--o seu credo, o seu génio e todo o seu coração.»
Agora, Joaquim Theophilo, interpretando com gaiata solercia as palavras de C. G., genro de Garrett e editor de Helena:
«Elle escreve alludindo á morte de Garrett: «Era um sol no occaso revendo-se na luz immensa [61] com que alumiava a patria.» E em seguida: «extinguiu-se aquella existencia esplendida abraçada á cruz de Christo...»
E ajunta o pellitrapo das letras com brutalidade manhosa:
«É de crêr que não haja aqui intenção maliciosa, mas desperta insensivelmente o dito celebre de Rodrigo da Fonseca Magalhães.»
É impudor glosar essa sordicia que ahi fica. Ninguem se demora a observar um cão resêcco, pilharengo, derreado, chagoso, que lambe faminto a sangueira negra de um matadouro.
Até os ossos de Rodrigo da Fonseca lhe serviram á gargalhada!
Nunca o honrado estadista proferira o tal motejo que lhe assacaram, estando Garrett na agonia da morte.
Garrett morreu entre dous amigos e duas irmãs da caridade.
Eu perguntei a um dos intimos de Fonseca Magalhães, ao desembargador Northon, se o seu amigo proferira o gracejo tão celebrado.
--Não--respondeu elle--mal sabe a dôr que [62] eu involuntariamente causei a Rodrigo, quando lhe repeti a proterva zombaria que lhe attribuiam.
*
* *
Agora, o outro Joaquim, o musicógrapho.
Escrevi em um livro estas linhas em fórma de carta a um amigo:
«Sabes tu o que eu queria roubar á gaveta de José Gomes Monteiro? As cartas de Almeida-Garrett, as confidencias d'aquelle immenso genio, que se expandiam na alma e intelligencia de José Gomes Monteiro. Estas seriam as paginas de ouro da biographia de ambos. Uma sei eu que existe em que Almeida-Garrett, em perigo de vida ou previsão de morte proxima, encarrega o seu amigo de defender-lhe a honra e a fama assim que a pedra sepulchral lhe vedar o direito da defeza. Que sublime legado! que legitima e jubilosa vaidade para o coração honrado e generoso de José Gomes Monteiro![9]»
E vai agora, o dos Musicos, péga de Garrett, adormecido, havia 19 annos, no sagrado somno [63] dos mortos santificados por saudade, talento e veneração, e enxovalha-o d'esta arte:
«Sim, senhor, basta isto para nos pintar o janota de 55 annos, que, para brilhar como um vieux vert aos olhos das petites maítresses de ha 30 annos, não teve vergonha de pintar as suas barbas com elixires, dando com a sua vida airada a confirmação de que o genio immenso precisa da bohème para a sua inspiração, etc.[10]».
Alma e linguagem travam-se aqui de mão, e medem a sciencia e a educação do sujeito. Este snr. Joaquim usa gravata, e não me consta que passasse a infancia gandaiando nas escadas dos Congregados. Foi educado na Allemanha, por não caber (diz elle) nos focos de immundicie physica, moral e intellectual de dous ou tres collegios do Porto onde o haviam mettido[11]. Já vêem que o homem é limpo. Depois, veio á patria para se formar em Coimbra; e, como aquillo de Coimbra lhe cheirasse aos collegios do Porto, foi-se embora, e abriu, por sua conta, universidade de frandulagens no Porto, com succursaes em Allemanha, França, etc.
[64]Não só é conhecido mas até soffregamente lido em Paris.
Elle mesmo nos conta esta cousa no livro onde estou esgaravatando:
«Voltamos serenamente aos nossos trabalhos sobre a Archeologia artistica para darmos a nova edição critica do Catalogo da livraria d'el-rei D. João IV que, como sabemos pelo nosso sabio amigo Mr. Ferdinand Denis, é esperada com impaciencia em Paris.»
Viram? com impaciencia.
Era em 1872, quando ainda o coração e o cerebro da França vibravam nas angustias do opprobrio nacional, da luta fratricida, da devastação, do petroleo, da ingente miseria das viuvas e dos orphãos. Pois, em meio de tanto horror, a unica esperança que, a intervallos, dava palpitações de gaudio a Paris era a impaciencia das turbas, com os olhos postos no occidente, á espera do livro do nosso, tão nosso, Joaquim! Cada vez que chegava á capital da França a mala de Portugal, as multidões acotovelavam-se frementes á porta do Mr. Ferdinand Denis, amigo do sobredito, e, ullulando insoffridas, pediam o Catalogo. O sabio francez linimentava com promessas o phrenesi da [65] academia e dos institutos; as massas debandavam; e depois, recolhido ao seu gabinete, Mr. Denis pedia novamente o Catalogo ao lusitano Joaquim, pintando-lhe com termos não encarecidos a impaciencia dos seus.
Aqui está quem é o homem lá fora, e cá dentro.
Elle embirra com a maioria do publico portuguez; e justifica a birra n'estes termos:
«Porque lhe antepomos um ideal que elle não quer ter[12].»
Então? fazem favor de aceitar o ideal que lhe antepõe o snr. Joaquim? Elle não sabe a significação do verbo ante-pôr; mas imagine-se que quer dizer o que a palavra não diz; presuma-se que nos offerece um ideal, por um preço razoavel. Que duvida temos em haver ás mãos isso que o rapaz nos trouxe de Hamburgo, em vez de nos trazer dous costaes de queijos? Ha de haver muito quem antes quizesse, em vez do ideal anteposto, uma idéa de servir; mas, se Joaquim dá ideaes, peguem n'elles, antes que o homem os exporte, como cá fazem aos bois gordos que os nossos [66] magarefes não aceitam pela taxa de Londres, posto que lh'os anteponham.
É o diabo este homem! Má mez p'ra elle!
Lá que o rapazola verbere os escriptores vivos que lhe não aceitam o ideal, é bem feito. De Mendes Leal, por exemplo, diz que é uma antigualha que só apparece nos leilões dos burguezes de ha 40 annos. De Castilho diz que lhe riscára o nome, depois que o outro Joaquim lhe applicou o processo. (Ai d'aquelles a quem o outro applica processos! Eheu!) De Herculano diz: «está decrepito». Todos estes e outros de menos porte são os relapsos do ideal de Joaquim; mas Garrett e Rebello da Silva? Um era já morto; o outro fallecia quando o enxovedo alvorejava n'este novo dia da sciencia patria. É crueza injurial-os, posto que Joaquim Theophilo Fernandes lhes haja applicado o processo.
Este Fernandes já processou o Herculano, e disse: «O snr. Alexandre Herculano nunca teve vocação litteraria[13].» E o Eurico? E a Abobada? E o Monge de Cistér? E o Bobo? e a Historia de Portugal? e a da Inquisição! e a Harpa do crente? Cuida o leitor que é mister vocação litteraria para escrever estas cousas? Não, senhor. Estes [67] livros só os escreve quem a não tem. O snr. Herculano, se tivesse vocação litteraria, fazia umas botas.
Parte d'aquellas obras diz Fernandes que é glosa da Notre Dame de Victor Hugo.
Eurico é a variante do typo de Claudio Frollo;
O Monge de Cistér é variante da paixão de Esmeralda e de Phebus;
O Bobo é o desenvolvimento de Pierre Gringoire;
A Historia de Portugal é apenas a historia dos concelhos precedida da biographia dos reis.
Depois, escalpella-lhe a linguagem, e diz que o seu estylo só se admitte nos rapazes de escóla[14].
O leitor está em dizer que este Joaquim parvoeira tão fóra dos termos concedidos aos sandeus que a policia não deve ser estranha ao escandalo.
Mas, n'este comenos, apparece um tal Adolpho Coelho, e diz:
É Theophilo Braga evidentemente um dos homens mais notaveis que Portugal tem produzido n'este seculo[15].
--E quem é Adolpho Coelho?--pergunta o leitor.
[68]Vem Theophilo, e responde:
É o introductor da sciencia da philologia comparada em Portugal[16].
Todos estes Joaquins é que sabem lá uns dos outros.
Juntam-se ás vezes e perguntam entre si:
Theophilo a Coelho: Quem és tu, ó aquelle?--Resposta: Eu sou o introductor da philologia comparada em Portugal.
Coelho a Theophilo: E tu?--Resposta: Sou um dos homens mais notaveis que Portugal tem produzido n'este seculo.
Joaquim dos Musicos a Joaquim dos Mosárabes: Quem sou eu?--Resposta: És o musicógrapho, e o inventor dos imperativos sejai e estejai.
O 2.º ao 1.º Joaquim: E eu?--Tu applicas processos, e eu risco os nomes.
Ó pandegos, ó lombrigas que roeis o intestino recto da Minerva! Ó Joaquins! Eu vos arrenego!
[8]No Diccionario bibliographico do snr. I. Francisco da Silva, é conhecido por Joaquim Theophilo Fernandes Braga. (Veja Supplemento).
[9] Esboços de apreciações litterarias.
[10] O consummado germanista, por Joaquim do Vasconcellos, pag. 50.
[11] Obra cit., pag. 2.
[12] Obra cit., pag. 9.
[13] Bibliographia critica, pag. 106.
[14] Obra cit., pag. 200 e 201.
[15] Obra cit., pag. 215.
[16] Obra cit., pag. 253.
É o snr. Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos que m'as envia. Irei levar-lh'as. Conheço a valia que principia a hervecer. As côres alegres da esperança cobrem a podridão.
Estão como a dizer-nos que o viver é olhar para diante e para os vivos; e nada de mortos nem de saudades. Iremos levar-lhe as flôres do seu amigo da mocidade.
Antonio Augusto escreveu, a respeito de Ferreira Rangel, no seu Jornal da Noite, uma pagina assignaladamente formosa e triste. Alli ha coração, ha lagrimas, ha o que quer que seja que resgata o delicto da imprensa, silenciosa, na morte de um valoroso obreiro da liberdade, e modesto cultor das letras. E, ao proposito de letras, acrescentarei que Ferreira Rangel, nos derradeiros annos da vida, tinha uns cem volumes de obras portuguezas mais de sua feição; e, quando expirou, esses cem volumes estavam empenhados para o custeio dos ultimos caldos.
Indemnise-se a indigencia d'este homem de [70] bem com a riqueza do alto louvor que lhe apregôa um brilhante espirito a quem não se escondem as desventuras alheias, nem esmorece o brado a favor dos desvalidos.
Estas são as palavras pungitivas e eloquentes do grande escriptor:
«Não succedeu porém outro tanto com o artigo intitulado Ferreira Rangel. Ahi assaltou-nos a saudade do homem, a recordação de obsequios recebidos, a magoa da sua desventura, e não podémos, nem quizemos conter as lagrimas. Se é vergonha chorar, diga-se que é a mais viciosa vergonha inventada por homens.
«Conhecemos aquelle Francisco Ferreira Ribeiro Pinto Rangel em 1834. Ainda morava a Santo Antonio do Penedo em uma especie de ilha sem mar entre o convento de Santa Clara e o palacio dos Vieiras de Mello, então habitado pelo visconde de S. Gil de Perre, depois marquez de Terena, e agora pelo snr. visconde de Azevedo. A supposta ilha era formada, se a memoria nos não engana, pela capella de Santo Antonio e pela casa do chamado escrivão fidalgo cujo brazão recentemente collocado alvejava na frontaria.
«Ferreira Rangel tinha servido em um dos [71] batalhões do Porto durante o cerco, e era liberal enthusiasta. Ainda trajava o uniforme militar, e apparecia nos theatros, nos passeios e em todas as reuniões. Não lhe chamavam janota porque a palavra estava por cunhar na casa da moeda da vernaculidade. Os seus principaes companheiros eram Nicolau Coquet Pinto de Queiroz que foi depois empregado da camara municipal, e talvez já não viva, e Antonio Joaquim Carneiro Homem que foi acabar a vida em Moçambique, provido no mais reles emprego da provincia em recompensa de varias feridas recebidas no cerco e de ter gasto na defeza da liberdade toda a sua fazenda. O ministro que o despachou, envergonhava-se de empregar tão mesquinhamente homem de taes serviços. Era o snr. Mendes Leal. Mas não havia outro emprego, e o pobre voluntario liberal não podia esperar. Tinha mulher e filhos, e já não tinha pão nem calçado.
«D'esses tres homens o que tinha imaginação mais viva, enthusiasmo vigoroso, e propensões litterarias era Ferreira Rangel. O seu amor á liberdade não tinha limites, e como era amor sincero, muitas vezes o impelliu a expôr a vida para salvar da furia brutal dos exaltados os proprios adversarios contra quem lutára havia pouco nas linhas do Porto. Alguns cavalheiros das provincias [72] do norte lhe deveram n'esse tempo assignalados serviços. A generosidade do coração era n'elle igual á coragem e valentia.
«Uma noite desciamos a rua do Bomjardim onde moravamos, e ao dobrar a esquina da rua do Bolhão vimo-nos cercados por quatro scelerados que tomando-nos, apesar de imberbe, por algum temeroso capitão das hostes realistas, iam demonstrar-nos com argumentos de carvalho-cerquinho a excellencia do governo liberal, e induzir-nos a crêr que os caceteiros azues e brancos não ficavam a dever nada aos seus predecessores azues e encarnados.
«Subia a rua Ferreira Rangel e chegava ao sitio do combate; quando o rapaz de 18 annos principiava a rebater, como podia, a crua dureza d'aquelles argumentos. O mesmo foi advertir no caso que saltar ao meio do grupo, deitar por terra um dos aggressores, ferido de tremenda bofetada, e obrigar os outros a fugirem, envergonhados mas resmungando.
«Conservamos sempre relações com este excellente homem. Depois de 1839 nas ferias da universidade, iamos sempre visital-o quando passavamos no Porto. Desde 1850 nunca mais tivemos noticias d'elle. Quando agora lêmos no livro do snr. Camillo Castello Branco a commemoração [73] da morte de Ferreira Rangel, desvalido, ignorado, e conduzido na tumba dos pobres entre quatro tochas desde a rua Chã até ao Prado, sentimos não ter estado no Porto n'esse dia para acompanhar á derradeira morada aquelle homem desditoso.
Está explicada a sensação que nos causou o artigo Ferreira Rangel. Permitta o snr. Camillo Castello Branco que entre o ruido surdo da enxada do coveiro alizando o comoro de terra sobre as taboas chuviscadas do caixão, e o silencio eterno do mundo, se levante a nossa voz a prestar á memoria do morto a homenagem da gratidão que lhe deviamos.
«D'esta vez a alçada da imprensa chegará até ao esquife do defunto, e derramará sobre elle sinceras lagrimas de saudade e de reconhecimento.»
No estimavel livro das Cartas familiares de D. Francisco Manoel de Mello, ha uma que estimulava fortemente a minha curiosidade, sempre que [74] a lia. É a LXXIV da centuria segunda, escripta a um amigo que passava á provincia da Beira. A carta é breve, e diz assim:
«Que vos hei de dizer? senão que vos vades embora, que estejaes pouco, que vos lembreis de mim. Não sei certo se se diz mais nas partidas: que eu, de puro estar, já não sei se como a gente se despede[17]. Só vos peço que, pois ides para terra de muitos castanheiros, me não caseis lá com alguma Maria Castanha; cujo tempo parece que tornou agora, porque aqui entre nós o fez assim.... Mas que muito, se traz o diabo aos pés, que o fizesse resvalar e cahir? salvo na conta. Ide com Deus, senhor meu, e tende em tudo tão bom successo, que vos pareça a Beira mal, e volteis logo. Nosso Senhor, etc. Torre em 15 de maio 1646.»
As palavras grifadas eram o meu enleio. Toda a minha scisma laborava em saber o nome rebuçado n'aquellas reticencias, a razão por que o sujeito trazia o diabo aos pés, e que casta de pessoa era aquella Castanha casada com o anonymo, forçosamente individuo de alta prosapia.
As pessoas de siso, que leram esta carta enigmatica, [75] de certo não moêram sua paciencia a farejar-lhe o escandalo; eu, porém, que não posso dormir, e acordo os mortos para conversarem commigo á hora em que os vivos dormem, necessito saber por inteiro o viver das pessoas com quem estou relacionado.
E, por tanto, á custa de muito averiguar, e bisbilhotar com os contemporaneos do illustre encarcerado da Torre Velha, logrei decifrar-lhe a carta.
As reticencias encobrem o nome de Francisco Botelho, primeiro conde de S. Miguel. Por ser de S. Miguel, é que D. Francisco lhe põe o diabo aos pés.
Temos o nome do mysterioso personagem.
Saibamos agora quem era a Castanha.
Era Ignez de Almeida, filha de Manoel Castanha, escrivão em Lisboa.
Ignez era formosa e honesta.
O conde de S. Miguel, já viuvo de D. Isabel de Mendonça, filha do segundo conde de Penaguião, apaixonou-se por Ignez. Frustrados na esquivança da moça todos os artificios do ouro com o prestigio da pessoa, o conde accedeu á condição que ella estipulou: o casamento.
Divulgou-se em Lisboa o disparatado consorcio, que toda a fidalguia censurou, e D. Francisco [76] Manoel metteu a riso, dando o noivo como resvalado e cahido por cambapé que lhe fez o diabo.
No entanto, o escrivão Castanha rejubilava por se vêr tão egregiamente aparentado.
Volvidos dous annos, apaixona-se o conde por D. Isabel Cecilia de Tavora, filha herdeira de Alvaro Pires de Tavora.
Este fidalgo com os da sua parentella, e com os estranhos, escandalisam-se do proceder deshonrado do marido da Castanha, o qual ousa requestar uma donzella de primeira linhagem.
O conde defende-se, publicando que não é legitimamente casado com Ignez Castanha.
E, feita a infame declaração, separa-se d'ella e do filhinho, que se chamava Nuno.
Ignez, ferida no coração e na honra, protesta que é legitima esposa do conde de S. Miguel.
Instaura-se demanda.
O conde confessa então que, na verdade, fizera um simulacro de casamento, mediante um padre fingido, que era seu criado, com corôa rapada, e vestido sacerdotalmente.
A justiça aceitou a confissão do conde, confirmada pelo parocho fingido e pelas testemunhas da tromoia.
Sentenciada a nullidade do casamento, cuida o leitor que o conde foi obrigado a revalidal-o, [77] ou a seguir o seu criado e as testemunhas para o degredo?
Não, leitor pio.
A fidalguia restituiu ao seu parente a dignidade abalada pelo supposto consorcio com a Castanha.
A lei desquitou-o da pobre senhora, cujo delicto estava santificado por ignorar que no mundo havia tamanho infame.
Porém, como ella tivesse um filho, a sentença mandou que esse menino, D. Nuno Alvares Botelho, fosse considerado legitimo filho do conde de S. Miguel.
Ignez lá se foi amparar nos braços de seu pai, o plebeu, a quem Deus inspiraria ternuras que despontassem os espinhos da sua corôa de condessa ridiculisada pela sociedade.
Desembaraçado e readmittido á estima dos Tavoras, o conde casou com a tal Isabel Cecilia, de quem houve um filho que foi segundo conde de S. Miguel.
Quanto ao filho de Ignez, sabemos que viveu com pouco luzimento e escassos haveres. Casou com D. Luiza de Moura, filha de Antonio Castanheira de Moura. Teve dous filhos e cinco filhas. Um dos rapazes chegou a general na India. O outro casou com uma filha do capitão-mór de Goes, [78] Antonio Barreto Perdigão. Uma filha casou, e das outras quatro ignoro o destino.
Esta linha, derivada da fraude e do vicio mascarado com a batina e sobrepeliz, desappareceu: era justo. Na outra, que é a legitima e consagrada pelo padre authentico, é que está o setimo conde de S. Miguel, que--ainda bem!--não tem que vêr com a Castanha, zombeteada por D. Francisco Manoel.
Ora eu presumo que este fidalgo, que escreveu tão piedosas cousas a respeito de Santo Agostinho, quando soubesse que a supposta condessa de S. Miguel fôra apenas uma inconsciente concubina do seu torpe seductor, espantar-se-hia de se vêr a si entre ferros, e ao outro nos braços de D. Isabel de Tavora!
[17] Ia no seu 4.º anno de prisão D. Francisco Manoel.
Brindo o leitor com o capitulo primeiro d'um livro que ha de chamar-se os salões.
Firma-o--escuso apresental-o--um nome [79] que, ha vinte annos, alvoreceu por entre duas formosissimas auroras: a das letras amenas, e a dos triumphos forenses.
O visconde de Ouguella esteve já a meio caminho da montanha fragosa por onde se trepa a outra ordem de mais estrondosa celebridade. Por um triz que o não enxertam na estirpe tyrannicida dos Harmodios e Catões.
O governo, o delegado, a côrte e o Moraes do Mosquito principiavam a desbastar-lhe o marmore para o nicho no templo da Memoria, quando vem o jury, e nos diz que o visconde de Ouguella nem queria matar el-rei nosso senhor, nem vender-nos a Castella, nem frigir em petroleo as nossas carnes, mais ou menos pingues.
Esta decisão abriu um sorriso de socegado contentamento desde o poço do Borratem até á rua da Betêsga, não ha duvida; mas o visconde achou-se de repente reduzido sómente á celebridade que tinha: a do talento.
Um d'estes dias fui vêl-o a Lisboa. Achei-o na sua livraria, entre dous bustos de bronze que projectavam sobre elle umas sombras verde-negras, que lhe davam toques de luz sinistra. Os bustos figuraram-se-me de Ravaillac e Fieschi--os regicidas.
Passados alguns minutos, afiz-me áquella meia [80] luz crepuscular descórada pelos bronzes, e o meu coração e o meu figado aquietaram-se. Os bustos representavam a primor os dous estadistas mais philodynastas que deu Portugal: o duque de Palmella e Rodrigo da Fonseca Magalhães. O visconde, que, ao principio, me pareceu, nos tufos hirtos e espessos do seu cabello, o que quer que fosse de Mirabeau, já me transluzia no semblante o sorriso amoravel com que alumia o caminho de sua alma aos que lá sabem ir pela lealdade do coração.
Relancei os olhos, ainda suspeitosos, á sua banca, e vi papeis escriptos recentemente. Com a liberdade de condiscipulo desde a escóla, inclinei-me sobre o manuscripto, e li no alto de uma folha de almasso: os salões. Depois li o capitulo, que era o primeiro; dobrei-o, metti-o na algibeira, resolvido a estampal-o entre as minhas insomnias, como um despertar alegre, lucido e côr de rosa, entre dous pesadelos.
[81]Pour connaitre les hommes, pratiquer les femmes; pour connaitre les femmes, pratiquer encore les femmes: c'est la sagesse des nations folles.
La femme est le dernier mot du Créateur. Le grand maitre avait d'abord sculpté les mondes, puis le mastodonte, puis l'aigle, puis l'homme; il termina par la femme. Ce fut alors qu'il se reposa pour se contempler dans son oeuvre.
ARSÈNE HOUSSAYE.
O esboço é tudo.
A esculptura, a sciencia, a pintura, a litteratura e a propria vida começam pelo embryão.
Deus mesmo não cria de repente uma obra prima:--como todos os artistas, principia pelo esboço.
[82]A propria luz tem os seus arreboes, annuncia o seu alvorecer, tem as suas auroras, prepara-nos as suas alvoradas, insinua-se pelos cambiantes anacarados dos tons pallidos e transparentes da madrugada, formula o fiat lux biblico, antes de se espargirem os seus opulentos e brilhantissimos raios por sobre as magnificencias do universo.
Começar pelo esboço--no presente livro--era consultar as sibyllas da cidade antiga, as pythonissas que enunciavam a palavra divina, escutar os oraculos dos templos de Delphos e de Epheso, ouvir as Egerias do porvir, antes de dar a lume o manuscripto de João Aleixo de Castro Pimentel e Figueiredo.
Assim fiz.
Conta-se d'um povo d'Asia, que promettera o diadema de rei ao primeiro que, em determinado dia, visse nascer o sol. Correram á praça publica os ambiciosos da purpura real, e em quanto todos filavam o oriente, houve um, dos mais avisados, que, voltando costas ao berço do luzeiro esplendido da terra, pregou os olhos nas arrendadas cupulas d'um elegante e sumptuoso edificio, que demorava ao occidente.
Foi este que alcançou a corôa. As primeiras frechas de ouro, arremessadas pelo astro supremo [83] do dia, vieram cravar-se no topo das elevadas torres d'aquelle templo pagão.
O passado vencera, aqui, o futuro.
Sirva a lenda, n'este estylo e perfume oriental, para explicar o meu singelo proceder.
Quiz ouvir os murmurios das épocas, que passaram, e que vão perdidas na escura noite dos tempos. Desejei escutar o trabalho ruidoso dos seculos que vem, as promessas do futuro, os periodos que se desdobram, e desenrolam nos horisontes rasgados da nossa idade, pela voz authorisada e prophetica dos que riram, e dos que soffreram.
Foi por isso, que consultei a marqueza de ***, e a condessa de ***.
Uma é a religião austera do passado, cheia de nobilissimas tradições, personificação viva da côrte antiga, reflexo ainda esplendoroso da fidalga portugueza, na altivez das fórmas, na elegancia do dizer, na familiaridade estudada do trato, na urbanidade singela das maneiras, e no preito pago constantemente a tudo quanto é grande, nobre e generoso.
A outra, a condessa, senhora da mesma época, nascida, e educada no centro da mesma sociedade--permittam-me este desalinho de phrase--é, como a estatua da liberdade, erguida sobre [84] um pedestal de marmore de Carrara ou de Paros, esquecendo a proposito os pulverulentos pergaminhos d'outras eras, e os emblemas heraldicos da sua nobillissima familia, para se lembrar sómente que é ella, esta excellente senhora, uma das mais illustres victimas das tremendas e formidaveis lutas de emancipação, por que combatemos e batalhamos ha um seculo.
Sentei-me a seu lado, e escutei-as alternadamente.
Uma fazia-me curvar de joelhos, respeitoso, e reverente, ao rememorar o passado. A outra robustecia, em mim, este preito, que eu presto diariamente á imagem sacrosanta da liberdade.
A distincção, a grandeza do porte, a inimitavel polidez, a admiravel cortezia, a elegancia incomparavel, e as fórmas obsequiosamente aristocraticas são as mesmas.
Mas a marqueza soffreu, e soffreu muito pelo antigo regimen.
A condessa habitou, em tristezas amargas, e com dôres excruciantes, as cadêas da côrte pela liberdade.
Uma é a vestal antiga, espiando, sentinella irreprehensivel, junto do fogo sagrado, se a scentelha divina vai apagar-se, e prompta a acudir-lhe, solicita, para que o facho se conserve acceso, [85] e immaculado, na urna etrusca em que brilha e resplandece.
A outra é a musa da democracia--risonha, serena, e impassivel, quer no carcere, gemendo pela ousadia das suas crenças liberaes, quer a cavallo, com os cabellos desprendidos ao vento das batalhas, sofrega do ruido, e do pó e fumo dos combates, ao lado do homem, que o seu coração elegeu para esposo, e que foi, Achilles d'esta Iliada, um dos heroes nas epopêas da nossa liberdade.
E com o mesmo respeito, com a mesma attenção, e com a mesma homenagem li a estas duas illustres senhoras o manuscripto achado na gaveta do meu contador.
Eu respeito todas as crenças.
Onde ha uma alma, que se eleve nas aspirações grandiosas do futuro, onde ha um coração, que saiba palpitar, com enthusiasmo, na vasta arena de todas as religiões do sentimento--ha, ahi, de certo, uma individualidade marcada com o sello divino.
O Senhor, na omnipotencia dos seus impenetraveis designios, curvando-se, em toda a sua magestade, no centro do universo, escuta o ruido surdo, e imperceptivel para ouvidos humanos, da herva ignorada, e rasteira, que rasga a custo os [86] seios da terra, e ouve a prece fervorosa, e ardente da alma, que, em effluvios d'amor, se desprende das vaidades do mundo, e sobe até ao seu throno de gloria.
Só a hypocrisia, e o scepticismo são vis.
Não condemnemos crenças, nem aspirações.
Tenho medo que o credo de hontem seja o anathema de ámanhã.
Apavora-me o receio de que o axioma de hoje, da actualidade, seja a mentira, e a blasphemia do futuro.
Depois de Platão, d'Aristoteles, de Socrates e de Christo, que sabemos nós mais do mundo moral?
Newton, Galileu, Harvey, Cuvier, Laplace, Spinosa, Kant, Proudhon e tantos outros, n'essa pleiade immensa de illustrações, que vão atravessando os seculos, e renegando symbolos e credos, que passaram, são, para mim, a demonstração irrespondivel d'este clamor da consciencia.
Basta.
Volto ao manuscripto.
No pendor d'uma das montanhas sobre que está edificada Lisboa, no ponto mais suave da encosta, levanta-se um palacio, cuja apparencia é modesta.
Ahi vive a marqueza.
[87]Sobe-se uma escada de marmore á esquerda d'um pateo, que conserva todas as tradições arabes. No patamar superior rasga-se am corredor sombrio, e pouco alumiado, que conduz a uma saleta onde as elegancias modernas nada teem que vêr.
Este aposento não o adornou Gardet, nem o forraram os estofadores mais afamados dos nossos tempos. Foram os seculos, que o vestiram, que o alindaram, que lhe cobriram as paredes, e que lhe deram aquella austeridade de ornamentação, disposta alli por varias gerações. Ligam-se, e ajustam-se uns aos outros, em severas molduras d'ebano, os retratos dos avós d'esta illustre familia. Ao lado d'um camarista de Carlos III, de Hespanha, sorri, em vestuario de côrte, um cavalleiro de S. Thiago, filho segundo d'esta nobre estirpe. Em convivencia com um mimoso pagem do Escurial apruma-se, vigoroso e forte, um rico-homem de Castella, envolto no arrogante e opulento manto de grande de Hespanha. E as senhoras, oriundas de tão distinctos appellidos, adornadas com as telas e estofos preciosos de épocas, que já acabaram, parecem estremecer de jubilo, e anciarem pelo futuro d'aquelles tempos, que são hoje, para nós, o passado, e a cinza d'aquelles cadaveres.
[88]Foi ahi, n'essa saleta, respirando aquelles perfumes do seculo preterito, que li á marqueza o manuscripto de que sou legatario por direito de conquista.
A marqueza, se eu não quizera chamar-lhe a tradição viva, a imagem da luz diffusa, que se vai immergindo no oceano das nossas tradições heraldicas, e dos brasões esculpidos nas abobadas dos paços de Cintra, seria, ainda assim, um reflexo da bondade divina.
Encostada a uma bengala, cujo castão era uma maravilha artistica de Benvenuto Cellini, envolta em vestes negras, que a acompanham desde a sua viuvez, sem lhe occultarem a altivez das fórmas, e a superioridade da mais elevada distincção, ouviu a marqueza, attenta, a leitura dos trabalhos do desembargador. Sorriu-se ao chegarmos á conclusão, e soltou apenas estas palavras, fitando os seus avós:
--Visconde, ouça, e aconselhe-se com as illustrações do seculo. Eu sou o passado. Bata á porta da actualidade.
Beijei-lhe a mão, que a marqueza me estendeu com a elegancia da sua primorosa educação, e sahi, curvando-me perante a grandeza d'aquelles nobres instinctos, e suavidade de fórmas, que vão perdidas no nosso seculo.
[89]Ao levantar o reposteiro, onde o brasão de familia, bordado em lãs finissimas, brilha no centro dos panos, que rastejam, em vastas pregas franjadas, n'aquelle recinto, que é um salão de antepassados, um verdadeiro solar, vedado a olhos profanos--ouvi a voz branda, e cadenciada da marqueza, que me dizia de pé, em face do retrato de seu marido:
--Visconde, conte do marquez as historias que lhe narrei.
--Os desejos de v. exc.a são ordens para mim, minha senhora.
E sahi.
No fundo do passeio publico desdobram-se dous largos. Em um d'elles, por meio de casas mais ou menos mesquinhas, levanta-se um palacete no estylo moderno. Ha ahi uma sala, rica de adornos e de todo o conchego, que faz o confortavel da vida intima.
Vive ahi a condessa.
Pendem das paredes e cobrem as étagères varios retratos de familia.
Ha trabalhos de costura, e de crochet estendidos por sobre as mesas; ha, finalmente, todos estes pequenos nadas, que explicam os sentimentos intimos da existencia, e que se traduzem em recordações do lar domestico.
[90]Não era o vestibulo, entre os romanos, a primeira adoração a Vesta?
A condessa envolta, tambem, nos seus crepes negros, viuva do homem, que ajudou a cravar, com o vigor, e robustez do seu pulso, o pendão da liberdade em Portugal--recebeu-me com a semceremonia aristocratica do seu elegantissimo trato.
Apesar dos annos decorridos, a despeito dos desgostos profundos, das lagrimas choradas no lugubre captiveiro, dos trabalhos inenarraveis soffridos em lutas titanicas--conserva a condessa os perfis e contornos da sua antiga formosura, tão puros, e tão correctos, que, se não é a Venus irrompendo do seio das ondas espumosas e crystallinas dos mares da Grecia, na deslumbrante belleza do Olympo pagão, tem, ainda assim, os vagos e recordaveis traços da austera Juno, quando presidia aos festins dos deuses.
Ouviu impassivel a leitura do manuscripto.
--Que me diz v. exc.a a este livro?
Havia um sorriso ironico e espirituoso brincando nos labios da condessa.
--Digo-lhe, que o publique. Mas escute: faltam-lhe ahi os lampejos de fé viva, a crença robusta na liberdade, que animava e esforçava os heroes do Porto. Venha, aqui, por vezes, ouvir, [91] como lh'as tenho contado, as lendas d'essas lutas de gigantes. Perdôe muito, como eu tenho perdoado, aos homens que se esqueceram ou que erraram. Analíse e estude as variadas transicções, que nos trouxeram a estas sinistras épocas de descrença. Consulte o passado.
Abri, para sahir, a porta d'este magico e encantador gabinete na mesma perplexidade d'espirito com que entrára.
--Ouça, visconde--disse-me ainda esta illustre senhora, na phrase breve, e perceptivelmente imperiosa com que parece ordenar.--Não esqueça as historias que lhe tenho narrado. Dê-as como suas ou como escriptas pelo doutor João Aleixo--nem por isso lhe tomará elle contas na eternidade.
Curvei-me respeitoso, e sahi.
A condessa e a marqueza insistiam pela narração das anecdotas do seu tempo. Quanto ao mais, quanto á historia vasta, severa, incisiva, analytica, e verdadeira, como é ou deve ser, mandavam-me estudal-a nos livros, porque não podiam, não queriam ou não desejavam esclarecer-me.
Creio que o seculo XIX envolveu no sudario da agonia as idolatrias da idade media, assim [92] como as lendas do Golgotha amortalharam, para todo o sempre, a mythologia pagã.
Não se repetem agora os clamores sinistros, que reboavam nas florestas da Thessalia, e se ouviam nas clareiras dos bosques sagrados da Grecia e de Roma: «Morreu o Deus Pan!»
Mas vai acabando a democracia com os preitos, que as cruzadas, as côrtes d'amor, os torneios, e as cavallarias feudaes prestavam á mulher, divinisando-a. Quer-me parecer que a ultima Egeria, Madame Rolland, expirou no cadafalso em face da estatua da liberdade. É mais uma realeza que se extingue com tantas outras.
Onde acabava o oraculo começava a crença. Escutei o futuro.
E conservei intacto, sem rasuras, nem entrelinhas, o manuscripto do desembargador.
VISCONDE DE OUGUELLA.
[93]Sempre que encontrei este nome ligado á vida aventureira de D. Antonio, prior do Crato, me detive a scismar no honrado homem que se chamou assim.
Pedro de Alpoem era portuguez de rija tempera. Seguira o pequeno bando de D. Antonio, quando o duque de Bragança, D. João, primeiro de nome, transigiu com Philippe II, por preço que adiante se dirá. Acclamou-o em Santarem; fêl-o bemquisto da mocidade academica de Coimbra; seguiu-o na fuga, depois da derrota de Alcantara, até Vianna do Minho; e, d'ahi, como o infante se [94] agasalhasse em seguro abrigo, voltou a Lisboa a negociar-lhe a emigração em navio estrangeiro. Colhido de sobresalto n'esta diligencia, foi posto a tormento. Confessou que viera a Lisboa a fim de arranjar a passagem do principe; não lhe arrancaram, porém, as torturas o segredo do escondrijo de D. Antonio. Ameaçaram-no com a decapitação. Pedro de Alpoem sob-poz o pescoço ao cutello do verdugo, e pereceu com o segredo do asylo do seu rei. Estremada probidade, que só por si nobilita o nome portuguez, aviltado pelo maximo da fidalguia bandeada com o usurpador!
Entristecia-me a mingoada noticia que os historiadores nos transmittiram de tão memoravel sujeito. E esse pouco foi dadiva de Herrera (Cinco libros de la historia de Portugal, liv. III), de Faria e Sousa (Europa portugueza, tom. III, part. 1, cap. IV), e do opusculo francez intitulado Briefve et sommaire description de la vie et mort de D. Antoine, premier du nom et dix-huitième roy de Portugal, impressa em Paris, no anno 1629.
Uma vez, folheando a Bibliotheca lusitana, vi o nome e appellido do leal amigo de D. Antonio.
Senti uma d'essas raras alegrias que só entendem os que andam a joeirar o lixo dos seculos por vêr se acham um certo diamante que a maior parte da gente não trocaria por missangas.
[95]A noticia que Barbosa Machado me deu, rezava assim: Pedro de Alpoem Contador, natural de Coimbra, doutor em direito cesareo, collegial do collegio de S. Pedro, aonde foi admittido no 1.º de janeiro de 1578. Na universidade patria regentou a cadeira de Instituta, que levou por opposição a 18 de outubro de 1572, d'onde passou á do Código em 2 de janeiro de 1579. Foi um dos celebres defensores da successão da corôa portugueza a favor da senhora D. Catharina, como tambem do direito que tinha á mesma corôa o snr. D. Antonio, prior do Crato, por cuja causa morreu degolado. Escreveu: Carta ao duque de Bragança D. João, o primeiro de nome, quando Philippe Prudente entrou em Portugal. A data é do Seio de Abrahão a 20 de julho de 1581. Começa: «Obriga-me a escrever a v. exc.a cá d'est'outro mundo de verdades e desenganos.» Acaba: «Conforme a santa lei d'este reino ao qual Deus eternamente tem promettido conservar.» É larga, muito judiciosa, e consta de uma forte invectiva contra o cardeal D. Henrique, por dispôr que os castelhanos se senhoreassem de Portugal, e juntamente contra o mesmo duque de Bragança por seguir o cardeal. (Tom. III, pag. 553).
Alguns annos frustrei esforços em busca da carta manuscripta de Pedro de Alpoem, pois, com certeza, não corria impressa; até que, entre uns [96] papeis pertencentes á rica livraria do jurisconsulto Pereira e Sousa, e havidos por compra em 1873, se me deparou a carta que Barbosa Machado inculcára.
O investigador equivocou-se attribuindo-a ao doutor Pedro de Alpoem. Se reparasse que ella é datada no Seio de Abrahão, deprehenderia logo que, em nome de Pedro de Alpoem, já degolado em 20 de julho de 1581, alguém escreveu aquella carta, como vinda d'além-mundo. E, até no começo da carta, as palavras: Obriga-me a escrever a v. exc.a cá d'est'outro mundo de verdades e desenganos, estão confirmando a ficção.
Posto que o prazer de possuir um inedito de Alpoem se me agorentasse á luz da boa critica, nem por isso desestimei o manuscripto, onde abundam especies historicas não sabidas, traços profundos da physionomia do avô de D. João IV, e alguns lanços ignorados da biographia da nobre victima da amizade e do patriotismo.
Persisti, assim mesmo, na indagação da linhagem de Pedro de Alpoem, esperançado em descobrir miudezas que realçassem as feições principaes, já de si bastante proeminentes a caracterisal-o. Pouco mais esquadrinhei, senão que foi filho de Antonio de Alpoem, e neto de Pedro de Alpoem, e de uma senhora de appellido Caldeira, [97] filha de Affonso Domingos de Aveiro, instituidor da capella de Santo Ildefonso, na igreja de S. Thiago em Coimbra, da qual o justiçado amigo de D. Antonio era administrador[18]; e, como não deixasse descendencia, o morgadio passou a seus parentes, filhos de Isabel Caldeira, irmã de seu avô, casada com Estevão Barradas.
No fim do seculo XVIII, o possuidor do morgadio de Pedro de Alpoem era Lopo Cabral da Silveira, bisneto de D. Isabel Caldeira. Estas impertinencias genealogicas pouco montam na historia de um homem que se dispensava de avós illustres, bastando-lhe a proeza individual e sua de dar a cabeça ao algoz e legar o nome sem mancha ao coração do principe homisiado; mas seria hoje em dia brasão aos que procedessem d'esse egregio sangue.
D. Antonio captivou na desgraça amigos que lhe sacrificaram haveres, liberdade, honras e vida. Sobrelevam entre outros o conde de Vimioso, o bispo da Guarda, D. Diogo de Menezes,--que o duque d'Avila mandou enforcar em Cascaes, juntamente com Henrique Pereira, alcaide do castello--, Duarte de Lemos, senhor da Trofa, [98] D. João de Azevedo, Antonio de Brito Pimentel, Diogo Botelho, D. Duarte de Castro, D. Manoel de Portugal, Manoel da Fonseca da Nobrega, e D. João de Castro, o visionario, que, morta a esperança no filho de Violante Gomes, resuscitou D. Sebastião na pessoa do calabrez Marco Tullio.
As historias antigas e tambem as modernamente escriptas pelos snrs. Rebello da Silva e Pinheiro Chagas não mencionam um amigo estrenuo do prior do Crato. Era Martim Lopes de Azevedo, 19.º senhor da casa de Azevedo, hoje representado pelo snr. visconde d'aquelle titulo, cavalheiro em quem se alliam as altas qualidades do coração com superiores dotes de provada intelligencia.
Da inflexivel dedicação de Martim Lopes de Azevedo se lembra o principe desterrado na Carta latina que escreveu ao papa Gregorio XIII, e outro sim no seu testamento impresso nas Provas da historia genealogica da casa real, tom. II, pag. 556.
Era, ao tempo, aquelle fidalgo senhor da villa de Souto de Riba-Homem, e outros senhorios e padroados de igrejas. Bandeou-se com o filho do infante D. Luiz, logo que o duque de Bragança offereceu a sua casa como valhacouto seguro aos embaixadores hespanhoes, a quem os partidarios [99] do rei portuguez ameaçavam, depois da morte do cardeal-rei.
Perdidas as esperanças, Martim Lopes de Azevedo provou as angustias do carcere e desterro, até que, volvidos annos, conseguiu perdão de Philippe II, mediante o patrocinio de sua tia D. Leonor de Mascarenhas, que havia sido dama da imperatriz D. Isabel, mãi do rei que lhe perdoou. Todavia, o mais grosso de seus haveres em commendas e senhorios da corôa nunca mais voltou á casa de Azevedo. Todos os conjurados contra a usurpação, cedo ou tarde, se recobraram, e houveram generosas indemnisações dos reis brigantinos; não assim os descendentes de Martim Lopes, cujo representante, em 1874, dos bens de seus avoengos possue apenas o que a rapacissima vingança de Philippe II lhe deixou. Entre os netos de D. Arnaldo de Bayão e os do bastardo de Ignez Pires não tem havido no decurso de tres seculos humiliações de vassallos nem magnanimidade de reis.
Volvendo á suppositicia carta de Pedro de Alpoem, aceitemos de seu author, quem quer que fosse, o bosquejo do duque de Bragança, auxiliar, senão causa primaz, da escravidão de Portugal, da degradação da nobreza, da miseria do povo, [100] do perdimento das colonias, e dos atrozes flagellos que se contaram pelos dias de sessenta annos.
Sirva este papel de vestibulo por onde depois entraremos ao archivo secreto da veniaga que maniatou o duque de Bragança aos calcanhares de Philippe II.
[18] N'esta capella ainda existe a sepultura com epitaphio dos ascendentes de Pedro de Alpoem, mandada construir por seu avô do mesmo nome em 1514.
Pag. 42, linha 3.ª:
Aquillo com que mais se accende o engenho.
Emende:
Aquillo «com que mais se accende o engenho».
FIM DO 3.º NUMERO
End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3, by Camilo Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA. NO. 3 *** ***** This file should be named 24957-h.htm or 24957-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/4/9/5/24957/ Produced by Pedro Saborano Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.